Jurista da ditadura conta lorotas sobre artigo 142
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Em meio à queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF), o jurista Ives Gandra Martins vem provocando polêmica com uma interpretação peculiar da Constituição. Segundo ele, o STF não é a última instância decisória no país e, em caso de conflito entre poderes, as Forças Armadas entrariam em cena para “repor a ordem”, como um poder moderador. Martins vem citando a artigo 142 da Constituição para basear sua posição (“As forças armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”)
Na avaliação de alguns dos maiores juristas do país, porém, a posição de Gandra Martins é completamente equivocada. “Discordo radicalmente dessa posição, que não tem amparo nem no texto constitucional, nem na jurisprudência do STF e nem na literatura do constitucionalismo brasileiro ou internacional”, afirma Gustavo Binenbojm, professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Segundo Binenbojm, as forças armadas são instrumento de Estado para a garantia da lei da ordem, mas nunca atuam como árbitro. “Em qualquer democracia madura a interpretação e a aplicação das normas constitucionais e legais são prerrogativa do Judiciário, que tem na sua cúpula do STF”.
O ex-presidente da OAB Nacional, e atual presidente da comissão constitucional da entidade, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, afirma que não existe norma constitucional que atribua poder moderador para as forças armadas. “O poder moderador somente foi previsto pela primeira Constituição brasileira, ainda no no Império, Constituição em 1824, tendo fim com a proclamação da República, em 1889. Em todas as sete constituições do período republicano, inclusive a de 1988, em vigor, não houve qualquer regra constitucional prevendo a existência de similar poder moderador”.
Gandra Martins é apoiador declarado de Bolsonaro e pai de Ângela Gandra, secretária Nacional da Família, subordinada à ministra Damares Alves. Ele defendeu as posições exóticas sobre o papel das forças armadas em um artigo e em um vídeo que vêm sendo compartilhados em larga escala pela tropa bolsonarista nas redes sociais, como forma de ataque ao STF. Na visão dos apoiadores do presidente, o inquérito que investiga as fake news, sob comando do ministro Alexandre de Moraes, do STF, seria inconstitucional e representaria uma interferência do poder Judiciário com o objetivo de enfraquecer o Executivo, o que poderia exigir a entrada em ação do tal poder moderador das Forças Armadas.
A defesa das forças armadas como poder moderador já vinha sendo usada por apoiadores do presidente para criticar outra decisão do STF, também de Alexandre de Moraes, que barrou a nomeação do delegado Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, como pretendia o presidente Bolsonaro. Moraes impediu a nomeação de Ramagem alegando desvio de finalidade, depois que o ex-ministro Sergio Moro afirmou que Bolsonaro pretendia interferir na PF para proteger sua família e amigos.
No vídeo que vem sendo compartilhado por apoiadores do presidente, Gandra Martins afirma que “se um dos poderes resolver desobedecer, confrontar ou conflitar com outro, sobre a discussão de como é que se aplica a lei, não é o Supremo a última instância”. E continua: “O artigo 142 diz que quem tem que repor a lei e a ordem são as forças armadas”.
Para o jurista Lênio Streck, Gandra Martins faz uma leitura ideológica da Constituição. “Ele afirma o que gostaria que o artigo 142 dissesse, e ainda faz uma leitura fatiada, desprezando o princípio da unidade constitucional, que exige que a interpretação da Constituição seja feita tomando a Carta como um todo, e é certo que ela não permite intervenção militar. Pelo contrário, o constituinte escreveu que todo poder emana do povo, pelo voto”, afirma Streck, que é professor titular de direito constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Ainda segundo Streck, o artigo 142 não permite a interpretação feita por Gandra Martins. “Se assim fosse, a democracia, ao fim e ao cabo, dependeria de um poder armado. Seria um suicídio institucional. O artigo 142 apenas diz que, excepcionalmente, as forças podem ser chamadas para a tarefa de segurança pública, como já ocorre com as operações de Garantia da Lei e da Ordem. Jamais para se meterem na política”, finaliza.
Os três constitucionalistas são unânimes em afirmar que a Constituição define que o Supremo é o guardião da Carta Magna, e como guardião, por meio de um colegiado — e não apenas de uma só pessoa — tem a última palavra para interpretar e aplicar as leis.