Live evangélica de Bolsonaro é contestada na Justiça

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Foto: Reprodução

A escritora Iris Abravanel, que é evangélica e esposa de Silvio Santos, rogou a Deus para abençoar o Brasil e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O padre-cantor Reginaldo Manzotti entoou um de seus sucessos. O pastor Silas Malafaia citou trechos da Bíblia.

No domingo de Páscoa, em 12 de abril, líderes religiosos participaram ao longo de 2 horas e 19 minutos de uma transmissão ao vivo com Bolsonaro, a título de celebrar a data e transmitir mensagens de paz. A live foi exibida, como de costume, nas redes sociais do presidente, mas também na TV Brasil.

O uso da programação da emissora pública para o encontro virtual com representantes do cristianismo e do judaísmo violou a Constituição, o princípio do Estado laico e a legislação que criou a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), na visão da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos).

A entidade entrou na Justiça contra o governo federal, o presidente da República e a EBC pedindo que Bolsonaro fique proibido de repetir iniciativas do tipo e seja condenado a pagar R$ 100 mil por danos morais coletivos. O caso está na Justiça Federal do Distrito Federal.

O uso da emissora pública também sofreu críticas do relator da OEA (Organização dos Estados Americanos) para a liberdade de expressão, Edison Lanza, e de entidades como a Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e a Comissão de Empregados da EBC.

Apesar do conteúdo religioso, a live virou notícia na ocasião por outra razão: uma frase de Bolsonaro minimizando a pandemia da Covid-19. Na contramão do que sustentavam os especialistas, ele afirmou que o vírus estava “começando a ir embora” do país. A doença já matou mais de 8.000 brasileiros.

No início do vídeo, o presidente disse que participariam cerca de 40 líderes, mas nem todos surgiram na tela. Apareceram, por exemplo, o pastor e deputado federal Marco Feliciano (Republicanos-SP), aliado fiel de Bolsonaro, os pastores e cantores André Valadão e Eyshila Santos e o missionário R. R. Soares.

Também foram convidados: o bispo católico dom Fernando Antônio Figueiredo, o rabino Leib Rojtenberg, o casal fundador da Igreja Renascer em Cristo, apóstolo Estevam e bispa Sônia Hernandes, o bispo Robson Rodovalho, da Sara Nossa Terra, e a banda Ministério Atitude, famosa no segmento gospel.

Emulando a profissão do marido, Iris Abravanel fez as vezes de apresentadora e conduziu a dinâmica. O SBT, emissora de Silvio, chegou a exibir boa parte da videoconferência dentro de sua programação.

A Atea entendeu que o episódio envolvendo a TV Brasil se somou à “sistemática violação da laicidade do Estado” por Bolsonaro. Constitucionalmente, nenhum ente público pode intervir em matéria religiosa.

“A utilização da emissora para atender a interesses privados do presidente e de segmentos religiosos fere, indiscutivelmente, o interesse público. Está na hora de o Poder Judiciário frear isso”, diz a entidade.

O caso da live ainda contém um agravante, segundo Thales Bouchaton, advogado da Atea que ingressou com a ação civil pública. “Além de uma violação frontal à Constituição, houve uma manifestação de preferência e favorecimento da Presidência por determinadas crenças”, afirma.

A lei de criação da EBC, de 2008, veda “qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão”. A estatal também administra a Agência Brasil e as rádios Nacional e MEC.

Os veículos, em tese, devem oferecer “programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania”. Em 2019, Bolsonaro colocou um militar da reserva para comandar a EBC, o general Luiz Carlos Pereira Gomes.

Na nota conjunta em que repudiaram a live com os religiosos, a Comissão de Empregados da EBC, a Fenaj e os sindicatos dos jornalistas do Distrito Federal, do Rio de Janeiro e de São Paulo afirmaram que o episódio “marca o mais grave momento de instrumentalização da TV Brasil” no atual governo.

As organizações disseram que “a emissora vem sofrendo diversos casos de censura apontados pelos jornalistas da casa, retirou do ar programas culturais e de cunho LGBT e oferece em sua programação apenas a versão do governo federal dos fatos, sem espaço para o contraditório”.

A possível afronta à Constituição é rebatida por estudiosos como Jean Marques Regina, que é especialista em direito religioso e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião.

Para ele, Bolsonaro possui “legitimidade política e constitucional” para fazer a live, porque ela contemplou “a diversidade religiosa cristã” e “a fé é bem conceituada” pela maior parte da população brasileira.

“A laicidade do Estado não é um conceito fechado. Cada país, de acordo com sua história do relacionamento entre poder político e religião, molda institucionalmente as interações”, diz Regina à Folha.

Ele, que também atua como advogado de igrejas, discorda da Atea e considera que não houve excesso no episódio. “Foi um bate-papo informal, não uma cerimônia religiosa propriamente dita. O presidente se reuniu com líderes para uma palavra de ânimo e encorajamento.”

Fundada em 2008, a Atea diz ter hoje 14 mil associados em todo o país. A organização sem fins lucrativos, com sede em São Paulo, empunha bandeiras como a preservação do Estado laico e o combate à discriminação contra ateus e agnósticos.

Em outubro do ano passado, a associação processou Bolsonaro e os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), por causa dos gastos feitos com dinheiro público para bancar a viagem de autoridades para a canonização de Irmã Dulce no Vaticano.

Procurada pela Folha, a EBC disse que não iria se manifestar sobre as contestações à live da Páscoa. A Presidência da República não comentou o caso, mas informou, por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), que foi notificada do processo e “apresentará a manifestação dentro do prazo legal”.

Folha