Moro complicou a si e a Bolsonaro, dizem especialistas

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Foto: Marcos Corrêa/PR

O depoimento dado pelo ex-ministro Sergio Moro à Polícia Federal (PF) no último sábado (2) contém elementos de obstrução de Justiça, prevaricação e advocacia administrativa, segundo os especialistas ouvidos pelo UOL. O documento aponta possíveis atos ilícitos tanto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) quanto do próprio ex-ministro.

Na íntegra do depoimento, Moro afirmou que Bolsonaro lhe disse por mensagem querer “apenas uma” das 27 superintendências da Polícia Federal: a do Rio de Janeiro. Disse também que o presidente gostaria de ter “pessoas de sua confiança” na chefia da PF, além de “obter relatórios de inteligência” aos quais não tinha acesso. Por fim, afirmou ainda que Bolsonaro considerava a investigação de deputados da base de seu governo como “mais um motivo para a troca” na PF.

Moro afirmou em seu depoimento que Bolsonaro lhe enviou uma notícia por WhatsApp sobre a Polícia Federal estar “no encalço de deputados bolsonaristas”, e que este seria “mais um motivo para a troca da PF”. Tal diálogo aponta mais claramente para obstrução de Justiça, dizem os especialistas.

“Se a intenção for trocar o superintendente porque ele não quer que investigue deputados bolsonaristas, a tipificação está clara. Seria uma conduta antidemocrática, mas ainda é preciso que seja investigada”, afirma Ivana David, desembargadora do TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo).

“A interferência na Polícia Federal, em si, não é um problema criminal: Bolsonaro é o chefe da República e portanto pode interferir. Mas por que interferir? Fica claro que a intervenção se devia somente por causa das investigações no Rio de Janeiro, local onde está a principal atuação da família Bolsonaro”, aponta Bruno Salles, um dos coordenadores do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Por outro lado, o próprio comportamento de Moro em seu depoimento é questionado por criminalistas.

O ex-ministro disse que não disponibilizou à PF mais mensagens [de seu celular] pois elas “têm caráter privado (inclusive as eventualmente apagadas), ou se tratam de mensagens trocadas com autoridades públicas, mas sem qualquer relevância para o caso, no seu entendimento”.

Se alguém diz ter mais informações mas não achar ser relevante, em qualquer lugar do Brasil levaria a uma busca e apreensão”, aponta Salles.

Não é ele, Moro, que conduz este inquérito; não é a testemunha que diz o que é ou não relevante para o inquérito. Talvez seja o cacoete de um ex-juiz, mas isso não cabe mais a ele, cabe aos delegados, à Procuradoria e ao STF. Isso é o mais grave neste depoimento
Bruno Salles, advogado e integrante do IBCCRIM

A obstrução de Justiça não está prevista no Código Penal. O que há, por exemplo, no artigo 348, é a tipificação de “favorecimento pessoal”, com pena de um a seis meses de prisão, além de multa.

Moro afirmou em depoimento que, “crescendo as pressões para as substituições, o presidente lhe relatou verbalmente no Palácio do Planalto que precisava de pessoas de sua confiança, para que pudesse interagir, telefonar e obter relatórios de inteligência”. Na visão dos especialistas, este desejo de Bolsonaro seria ilegal.

A PF é uma polícia de Estado, nunca de governo. A questão é: trocar a chefia para interagir sobre o quê? Se estes ‘relatórios de inteligência’ forem sobre investigações em andamento, o presidente não tem este direito na função dele
Ivana David, desembargadora do TJ-SP

Já Salles reforça a ilegalidade desta suposta ambição do presidente da República. “Ele ter uma pessoa de confiança na chefia da PF não é um problema, ter acesso a relatórios não é problema. O que ele não pode é ter informações relativas a investigações. Se os relatórios de inteligência que ele quer são relativos a investigações, isso é ilegal, pode ser considerado advocacia administrativa ou violação de sigilo funcional”, explica.

O artigo 321 do Código Penal prevê que “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário” pode dar de um a três meses de detenção, ou multa.

Ao longo do depoimento, Moro afirma que a pressão de Bolsonaro para interferir na PF durou meses. A mensagem “você tem 27 Superintendências, eu quero apenas uma” teria sido enviada pelo presidente ainda em março, e o ex-ministro só pediu demissão e a tornou pública mais de um mês depois. Esta demora poderia ser tipificada como prevaricação, que é crime.

“O próprio tipo penal de prevaricação prevê esta hipótese. Se o agente público toma conhecimento de um delito ou de conduta que pode ser considerada delituosa, não pode guardar esta informação para usá-la depois. O dever de ofício exige avisar imediatamente às autoridades”, diz o advogado Bruno Salles.

Yuri Félix, também criminalista, é mais cauteloso em relação à hipótese de prevaricação, mas diz que o ex-ministro ao menos “flertou” com a infração.

Do ponto de vista de Moro ter ciência da possibilidade de um delito, e retardar a comunicação, ele flertou com uma eventual prevaricação. […] O que podemos falar, partindo da premissa de que Moro tenha expressado os fatos que ocorreram, é que princípios elementares da administração pública, como a moralidade e pessoalidade, foram feridos gravemente.
Yuri Félix, advogado criminalista

O ex-ministro disse no depoimento que “os fatos narrados [em sua coletiva de demissão] são verdadeiros”, mas que “não afirmou que o presidente teria cometido algum crime”. O ex-ministro teve o cuidado de afirmar que “a avaliação quanto a prática de crime cabe às instituições competentes”.

Para o advogado criminalista Gustavo Polido, esta é apenas uma “estratégia defensiva” de Moro. “Ele estaria apenas ‘comunicando fatos’, e não ‘capitulando fatos e atribuindo responsabilidade’. Assim pode retirar sua responsabilidade, uma vez que comunicar fatos à autoridade policial é dever de todos e qualquer cidadão, mas imputar falsamente um crime a alguém pode ser entendido como falsa comunicação de crime ou até delito contra a honra”, explica Polido.

O advogado criminalista David Metzker concorda.

Esta fala é exatamente para poder fugir da denunciação caluniosa. O intuito é precisamente o de fragilizá-la caso os crimes denunciados não sejam provados. Na minha opinião [esta denunciação caluniosa] realmente fica um pouco fragilizada em razão do depoimento.
David Metzker, advogado criminalista

“É simplesmente semântica. Pode-se dizer a mesma coisa de formas diferentes”, completa Bruno Salles, do IBCCRIM.

Uol