Violência no Rio atrapalha luta contra vírus

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Foto: Dado Galdieri/The New York Times

Em poucos segundos, o dia de André Dread, 38, passou da luta ao luto. Ele e os colegas já alcançavam a porta do carro para ir embora após longas horas entregando 200 cestas básicas à sua comunidade, na Cidade de Deus, quando um tiroteio começou.

O amigo motorista tentou dar ré, mas a roda prendeu numa vala. A quantidade de tiros já não permitia mais ficar na rua, e eles se abrigaram na casa de moradores. Quando os disparos cessaram, desesperado e incrédulo, ele saiu e parou na frente do caveirão da Polícia Militar que passava.

“Comecei a gritar que era morador, ator, que estavam fazendo uma operação no meio de uma ação solidária”, diz. “O dia foi muito bacana, nos emocionamos com várias falas de gente que não tinha um arroz em casa. Naquele momento eu pensei: não é possível que estão fazendo isso.”

Essa operação da PM e da Polícia Civil, que aconteceu na noite de quarta (20), terminou com a morte de João Vitor Gomes da Rocha, 18 —a polícia afirma que ele fazia parte de uma quadrilha de roubos e estava armado, mas a família nega e diz que ele saiu para retirar uma cesta básica.

Não foi a primeira vez que ações policiais e tiroteios, que persistem mesmo durante a crise do coronavírus, paralisaram doações em favelas do Rio de Janeiro. Também não é raro que confrontos como esse interrompam atendimentos em unidades de saúde.

Em dois meses de pandemia, ocorreram em média cinco tiroteios ou disparos por dia próximo a unidades de saúde na região metropolitana do Rio, segundo levantamento da plataforma colaborativa Fogo Cruzado, que considera tiros reportados em um raio de até 300 metros dos locais.

No total, foram 302 ocorrências dessas registradas de 14 de março a 13 de maio, quando já vigoravam restrições de circulação no estado. Isso significa que 577 unidades públicas e privadas (14% do total) foram afetadas no período.

A zona norte da capital foi a pior região, com 81 episódios com disparos, sendo que uma única clínica da família, na Vila Kennedy, registrou 53 deles. Já os tiroteios em geral, não só em volta de unidades de saúde, aumentaram de 865 nos dois meses pré-pandemia para 992 nos dois meses seguintes.

Unidades de atenção primária localizadas em territórios considerados de risco seguem uma espécie de “protocolo de guerra” no Rio, criado pela Secretaria Municipal de Saúde e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e baseado na experiência de países em conflito.

Dependendo do clima da comunidade em cada dia, o local fica em estágio vermelho (a unidade fecha), amarelo (atendimentos domiciliares são suspensos) ou verde —em 2019, foram 1.481 situações amarelas ou vermelhas. As ambulâncias do Samu, que já têm dificuldade para chegar, não entram quando há confrontos.

Dados compilados por um grupo de pesquisadores do Observatório da Segurança do RJ, ligado à Universidade Cândido Mendes, também mostram que as operações policiais no estado e as mortes decorrentes delas, que haviam diminuído no início do isolamento social, voltaram a subir.

Os óbitos nas incursões monitoradas despencaram 83% nas duas últimas semanas de março (de 23 para 4), mas cresceram 32% juntando abril e os primeiros 19 dias de maio (de 49 para 65), sempre em comparação com o mesmo período do ano passado.

“Nos surpreendemos com os dados, o esperado seria uma queda. Políticas de educação, de economia, tudo mudou nesse período, mas a polícia do Rio não muda. Eles passam dois recados muito fortes: não vamos mudar e não nos preocupamos com vidas em favelas, para nós o importante é combater o crime, mesmo às custas de tiroteios e mortes”, avalia a socióloga Silvia Ramos, coordenadora do Observatório.

A PM diz que as operações mensais se mantiveram no mesmo patamar no primeiro quadrimestre deste ano, mas não respondeu quantas foram. Também afirma que as atividades de enfrentamento ao crime organizado não sofreram alterações com a pandemia.

Isso se reflete nas comunidades. Na última sexta (15), uma ação da PM no Complexo do Alemão terminou com 12 mortos. Na segunda (18), o menino João Pedro Matos, 14, foi baleado dentro de casa após uma invasão da Polícia Federal e da Polícia Civil em São Gonçalo.

No mesmo dia, familiares relatam que Iago César Gonzaga, 21, foi torturado e morto durante outra operação da PM em Acari. Na quarta (20), a incursão da PM que paralisou a distribuição de doações na Cidade de Deus citada no início da reportagem acabou com a morte de João Vitor Gomes, 18.

Nesta quinta (21), foi a vez de Rodrigo Cerqueira, 19, também morto durante uma ação que interrompeu a distribuição de cestas básicas no Morro da Providência. Moradores contam que ele trabalhava em uma barraca quando foi baleado, mas a PM o trata como suspeito e alega que agentes foram recebidos a tiros em uma rua.

O Complexo do Alemão viveu situação parecida no fim de abril, quando voluntários que entregavam 400 cestas e kits de higiene se viram no meio de um tiroteio. Eles dizem que o caminhão de doações foi confundido com um veículo roubado por policiais. A PM nega e afirma que uma equipe foi atacada durante uma operação, mas não revidou.

Sobre a frequência de operações em tempos de pandemia, a Polícia Militar do RJ ressaltou que, com o decreto governamental para conter o avanço do coronavírus, a corporação precisou ampliar seu planejamento da área operacional.

“Além do policiamento preventivo e ostensivo, os policiais militares estão atuando em bloqueios urbanos e rodoviários para atender as demandas da norma que estabeleceu o isolamento social. A ampliação não trouxe qualquer prejuízo para as atividades rotineiras da corporação”, afirmou.

Também respondeu que as operações são sempre planejadas com informações da área de inteligência e que “o saldo operacional demonstra a dimensão do desafio”. Até 20 de maio, a PM diz que apreendeu mais de 2.800 armas de fogo, entre elas 145 fuzis, e encaminhou mais de 13 mil suspeitos a delegacias.

Folha