Associações de PMs vão à Justiça contra charges (!)
Foto: Reprodução/Laerte
A Folha e os cartunistas Laerte, João Montanaro, Alberto Benett e Claudio Mor estão sendo interpelados na Justiça pela publicação de cinco charges críticas à violência policial no Brasil em dezembro de 2019.
Seis meses depois, a Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar, Defenda PM, entrou na Justiça com pedido de esclarecimento criminal para que o Grupo Folha e os artistas explicassem as charges, consideradas pela entidade como “constrangedoras” a ela e a seus cerca de 2.000 associados.
Fundada em 2016, a associação é reconhecida entre seus pares por abrigar uma ala mais conservadora e radical da Polícia Militar, hoje associada ao bolsonarismo.
Seu presidente, o coronel Elias Miler da Silva, é assessor parlamentar do senador Major Olímpio (PSL-SP).
O pedido de esclarecimento criminal é uma espécie de prelúdio de uma ação penal e, como tal, é indissociável de contornos intimidatórios.
“Considerei a interpelação impertinente, autoritária e despida de lógica”, afirma o advogado Luís Francisco de Carvalho Filho, que representa o jornal. “A intenção de quem faz isso é intimidar a imprensa.”
Entre as perguntas colocadas na peça da Defenda PM estão dúvidas sobre os desenhos se referirem a algum episódio específico, sobre a existência de intenção de desqualificar profissionalmente integrantes das forças policiais e sobre haver algum tipo de arrependimento por parte de seus autores sobre as obras.
Para o chargista João Montanaro, 24, as questões “parecem fruto de uma falta de interpretação visual”. E, para além disso, são “sintoma de toda essa atmosfera que estamos vivendo”.
“Nunca tive de lidar com algo deste tipo. Achei que poderia ser algo sério. Mas depois me pareceu algo extremamente esdrúxulo”, avalia ele, cuja charge, à época, provocou reações de entidades de policiais em redes sociais.
“Explicar charge é uma coisa deprimente”, desabafa o cartunista Alberto Benett, 46. “Se estamos contando uma história por meio de um desenho, explicá-lo é matar a ideia e sua interpretação.”
Benett compara a situação da interpelação a sua própria charge interpelada, que retrata uma senhora horrorizada com um desenho publicado num jornal que cobre um corpo estirado no chão, potencialmente alvo da ação de policiais. “É como se o desenho fosse mais chocante que o fato que ele retrata.”
As cinco charges questionadas pela Defenda PM foram elaboradas no rescaldo da ação da PM de São Paulo em um baile funk na favela de Paraisópolis que provocou a morte de nove jovens no dia 1º de dezembro do ano passado.
Duas delas fazem referência a cenas daquela madrugada registradas em vídeos que viralizaram ao exporem a truculência de alguns policiais.
“O chargista reage a uma ação. A gente não inventa notícias, mas se baseia nelas e expressa críticas. Então, eu vejo esse caso como uma tentativa de censura”, diz Claudio Mor, 40.
A violência policial no Brasil é um fenômeno sistêmico que extrapola qualquer episódio específico. Em cinco anos, as mortes decorrentes de intervenções policiais cresceram 181%, e levantamentos apontaram que mais de 70% dessas vítimas são pessoas negras.
Em 2018, os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo tinham as mais altas proporções de mortes provocadas por policiais em comparação com o total de homicídios: 23% e 20% respectivamente.
Em 2020, mesmo diante da queda dos índices de criminalidade durante a pandemia do coronavírus, a letalidade provocada por policiais militares e civis de São Paulo cresceu 31% entre janeiro e abril em comparação com o mesmo período de 2019, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Os exemplos de excessos policiais no Brasil são muito numerosos, evidentes e têm se intensificado. A linguagem do humor tem o dever de ir em cima disso”, avalia a cartunista Laerte. “A polícia brasileira é conhecida mundialmente pela truculência e pela letalidade. Portanto nenhuma dessas charges têm como motivação birras ou implicâncias. São linguagens humorísticas, mas necessariamente agressivas, amplamente calçadas em fatos, fotos e exemplos.”
Para ela, o gesto do pedido de esclarecimento “está sintonizado com o momento de crescimento de uma situação autoritária no Brasil”.
Laerte cita a exclusão de indicadores de violência policial praticada no Brasil em 2019 do relatório anual do governo federal sobre direitos humanos. “Se instalou um clima de desinformação e censura que é muito sério.”
Benett enxerga o caso como “prelúdio de uma perseguição mais acirrada contra a imprensa e o jornalismo crítico —algo que é parte da cultura deste governo [federal]”.
“Não é normal que um presidente peça para as pessoas cancelarem assinaturas de um jornal ou que empresas deixem de anunciar em suas páginas. Assim como ele pede para pessoas invadirem hospitais, daqui a pouco as pessoas podem achar que devem invadir Redações.”
A Defenda PM foi questionada pela reportagem da Folha sobre as motivações para o pedido de esclarecimento criminal seis meses depois da publicação das charges, sobre o potencial intimidatório da medida, comprometendo a liberdade de imprensa e de expressão, e sobre o comportamento ideológico da entidade. A associação não quis responder aos questionamentos.
Ainda que tenha afirmado, em nota, que “não se envolve, institucionalmente, em questões partidárias ou de caráter eleitoral”, seu presidente, o coronel Miler da Silva, chegou a gravar vídeos pedindo votos para Major Olímpio e Jair Bolsonaro durante as eleições.
A mesma nota afirma que a entidade “não apoia, emite juízo de opinião ou crítica aos poderes constituídos, aos representantes eleitos”, a página principal de seu site estampa em letras garrafais: “Governador João Doria. Despreparado para SP. Despreparado para o Brasil”.