Autores do artigo 142 negam permissão a “intervenção” em Poderes
Foto: Jamil Bittar / Agência O Globo/
Transformado por bolsonaristas em pretexto para uma possível intervenção militar, o artigo 142 da Constituição não foi redigido para permitir qualquer ação das Forças Armadas contra Legislativo e Judiciário. O trecho da Carta de 1988, segundo deputados constituintes ouvidos pelo GLOBO, nunca teve esse alcance. Levantamento feito em notas taquigráficas da Constituinte e no noticiário de 1987, quando o artigo foi elaborado, além de relatos dos próprios parlamentares, revela que houve atritos com as Forças Armadas sobre qual seria seu papel. Mas nunca a intenção de transformar os militares em “poder moderador”.
O trecho da Constituição em questão diz que as Forças Armadas, “sob a autoridade suprema do Presidente da República”, “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. À época líder do PMDB no Senado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ajudou a formular o texto e enfrentou a insatisfação do então general do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, mas por questões pontuais. Segundo Fernando Henrique, ele e o senador José Richa (PMDB-PR) participaram pessoalmente das negociações com os militares.
— O que o senador Richa e eu introduzimos de novo no texto foi que qualquer dos três Poderes poderia convocar as Forças Armadas para assegurar a lei e a ordem. Era usual (como é) convocá-las, em certas regiões do país para garantir, por exemplo, que as eleições ocorram pacificamente. Nada se pensava em termos de tutela —disse Fernando Henrique ao GLOBO.
Proteção de direitos
Para o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Nelson Jobim, que como deputado foi sub-relator de sistematização da Carta, as interpretações de que os militares teriam papel de mediadores não procedem. Para ele, assim como para outros constitucionalistas e historiadores, a proteção dos direitos constitucionais “é proteção contra terceiros, não entre eles”.
Colega de Jobim em 1987 e 1988, Miro Teixeira (Rede-RJ) diz que tratar a possibilidade intervenção pelo uso das Forças Armadas por considerá-las um poder moderador é “um deboche e uma afronta à inteligência alheia”.
— O texto é claríssimo. O Brasil não tem poder moderador. É muito claro: os três Poderes são independentes e harmônicos entre si. Em último caso, se não respeitarem os limites, quem dá a palavra final é o Supremo— diz Teixeira.
Apesar de este ponto ser pacífico entre estudiosos e constituintes, houve solavancos na redação do texto. Em agosto de 1987, em uma reunião no Palácio do Planalto, parlamentares e o então presidente José Sarney ouviram do general Leônidas que os trabalhos estavam sendo “manobrados por um pequeno grupo radical de esquerda”, segundo os jornais da época. O pano de fundo da discussão era a redação do artigo 142 e a insatisfações em relação ao orçamento das Forças Armadas. Sobre o papel constitucional dos militares, o alvo da discórdia era a exclusão da prerrogativa de garantia da “lei e da ordem” interna do país. Antes da intervenção de Fernando Henrique e José Richa, os militares ficaram insatisfeitos com relator do texto, Bernardo Cabral (PMDB-AM). Cabral sinalizou que incluiria no texto a proposta de Afonso Arinos já derrotada em comissão. Os militares seriam alijados de qualquer função para a manutenção da ordem interna.
Os militares estavam insatisfeitos também com vários pontos do projeto relatado por Cabral, embora não tivessem tanta interferência. Criticavam a possibilidade de instituição do parlamentarismo, a ideia de reincorporar militares cassados pela ditadura e a concessão de benefícios a pracinhas (combatentes da Segunda Guerra). Uma das discussões mais polêmicas era ainda o encurtamento do mandato de Sarney.
O desfile de 7 de setembro de 1987, por exemplo, foi usado como pretexto para defender o papel das Forças Armadas nas constituições precedentes. Na Carta democrática de 1946, assim como a de 1967, havia a previsão da manutenção da lei e da ordem interna do país pelos militares, mas não a convocação pelos demais Poderes. Na ocasião, a esquerda cogitava a possibilidade de que a “garantia da ordem interna” fosse usada como pretexto para ação ilegal de militares. Mas a maioria dos deputados constituintes não viam a redação do artigo como uma brecha para tal.