Bolsonarismo pode levar governo a colapso
Foto: Thiago Teixeira / Agência Estado
O êxito do bolsonarismo, com sua paixão mobilizadora nas redes sociais e nas ruas, invibiliza o governo Jair Bolsonaro, diagnostica o professor João Cezar de Castro Rocha, pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Titular de Literatura Comparada na instituição, ele aponta o paradoxo do discurso bolsonarista no livro “Guerra cultural e retórica do ódio (Crônicas do Brasil)”, que lançará em julho. Destaca a necessidade dos seguidores do presidente (e dele próprio) de ter, o tempo todo, inimigos a combater, um fator que, prevê, levará a administração ao colapso. Isso estaria evidente no combate à covid-19, avalia, e já desgasta o presidente, por colocar a população diante de fatos concretos, como doença e óbitos em massa.
“Com a presença de uma peste, nós, seres humanos, temos um encontro marcado com aquilo que não queremos jamais encontrar, que é a finitude, a morte. É muito claro: a morte não é um meme, e a vida não se reduz à disputa de narrativas”, afirmou, em entrevista ao Estadão.
Em seu livro, Castro Rocha defende que, para manter a polarização que o elegeu, Bolsonaro e seus seguidores recorrem a uma versão brasileira da guerra cultural. Ela teria peculiaridades em relação ao conceito cunhado pelo sociólogo norte-americano James Davison Hunter, nos anos 90 do século passado. Enquanto nos Estados Unidos a ideia envolvia a polarização entre conservadores e liberais sobre temas como aborto, porte de armas, aquecimento global, imigração, Estado laico, a extrema direita brasileira recorre a três elementos locais para montar uma ideologia. São eles a Doutrina de Segurança Nacional que embasou a ditadura de 1964-1985; o Orvil, livro produzido pelos militares com sua versão para aqueles anos; e o que chamou de “Sistema de Crenças Olavo de Carvalho”, com opiniões do escritor. “Um sistema de crenças não pode ser combatido racionalmente”, disse o professor.
Para ele, a prisão de Fabrício Queiroz, com a possibilidade de comprovação de crimes ligados ao clã, tende a abalar o apoio a Bolsonaro. Não será capaz , porém, de afastar seus seguidores mais extremados, analisa. A seguir, as declarações do professor ao Estadão.
O senhor se refere em seu livro a uma forma brasileira de guerra cultural, diferente da norte-americana, que estaria sendo empreendida pelo governo Bolsonaro. O que é isso?
Em nenhuma circunstância estou negando que a guerra cultural bolsonarista lance mão de diversos recursos utilizados sobretudo pela extrema-direita norte-americana. A relação muito próxima, por exemplo, entre Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon torna isso evidente. De algum modo, a campanha eleitoral e a maneira de governo de Jair Bolsonaro são muito calcadas nas técnicas desenvolvidas pelo Steve Bannon e que, no primeiro momento, foram adotadas pelo Donald Trump. Quero dizer o seguinte: não estou negando que seja possível fazer um estudo da guerra cultural bolsonarista que valorize a proximidade de tudo que o governo Bolsonaro realiza e que pode ser encontrado em governos da Turquia, da Hungria. E, do ponto de vista cultural, com todas as técnicas de utilização de Whats App e das redes sociais, que caracteriza o avanço da extrema direita no mundo inteiro. Há uma dimensão na guerra cultural bolsonarista que não é brasileira, está claro?
Mas o que distingue o caso brasileiro?
No meu livro, eu estou me dedicando a fazer algo que, salvo melhor juízo, não foi feito. É um estudo específico da mentalidade bolsonarista em relação a três elementos que, esses sim, são propriamente brasileiros. São três elementos que proponho, e eles se relacionam. E se relacionam com um quarto elemento que não foi planejado, mas tem uma força tremenda e que provavelmente podemos dizer que elegeu Bolsonaro.
Quais são?
Então vamos lá. Em primeiro lugar uma surpreendente tradução da Doutrina de Segurança Nacional para tempos de democracia. A Doutrina de Segurança Nacional não é brasileira, foi desenvolvida na Guerra Fria. No Brasil, foi aperfeiçoada durante a ditadura militar e conheceu três legislações. A primeira delas, foi a Lei de Segurança Nacional de 67, que já era uma lei muito forte, mas não se comparava à Lei de Segurança Nacional de 1969, que permaneceu até 1983. Se você for ao site do Senado e baixar a Lei de Segurança Nacional, vai lê-la em 20 minutos. Você imagina, na Lei de Segurança Nacional de 1969, quantas vezes aparece o substantivo morte? Trinta e duas. Restabeleceu a pena de morte. Em três artigos, a pena mínima era prisão perpétua, a máxima, pena de morte. Essa lei foi revogada em 1983, ainda no governo Figueiredo. E a lei com que contamos hoje é a de 1983. Uma vez que o inimigo interno é identificado, a Doutrina de Segurança Nacional é muito clara: é preciso eliminá-lo – ponto. Eliminação do inimigo interno… Toda a mentalidade bolsonarista é essa. Como, em tempos democráticos, você não pode eliminar as pessoas fisicamente, todo o governo Bolsonaro é voltado para a destruição das instituições nas quais a mentalidade bolso-olavista acredita que estão os inimigos. Ou seja, as instituições da cultura, da educação, da ciência, do meio ambiente, dos direitos humanos e da cidadania.
Que mais?
O segundo eixo é algo surpreendente. A chave interpretativa é um projeto do Exército chamado Orvil, que quer dizer livro ao inverso. Foi um projeto desenvolvido, de forma secreta, entre 1986 e 1989, sob a liderança do ministro do Exército na época do (presidente) José Sarney, Leônidas Pires Gonçalves. E pretendia ser uma resposta, simetricamente invertida, ao livro Brasil: Nunca Mais, de 1985. Porque o livro Brasil Nunca Mais, com material obtido no Superior Tribunal Militar, trazia uma série de depoimentos colhidos nos autos dos processos, de pessoas que diziam aos militares que os estavam julgando: fui torturado em tais e quais condições. Como é que o Orvil responde a isso? Argumentando que os grupos armados de esquerda especialmente entre 1967 e 1974 cometeram crimes. Quando você escuta os discursos amalucados, os discursos pouco sensatos, do Carlos Bolsonaro, da família Bolsonaro, de que os governadores estão tentando implantar uma ditadura comunista chinesa no Brasil, você diz: é uma loucura. Não, não…
Por quê?
Essa é a matriz narrativa do Orvil, que diz que de 1922 até 1989 – e você pode projetar para 2020, que é o caso da mentalidade bolsonarista- , não se passou nem um dia no qual o movimento comunista internacional não estivesse tramando uma intriga de proporções vastas para transformação de um território de dimensões continentais, o Brasil, em uma China tropical. Isso está escrito no Orvil. O subtítulo do livro é tentativas de tomada do poder. Houve (segundo o livro) quatro tentativas. A primeira acontece entre 1922 e 1954 e fracassada Intentona Comunista de 1935 até a radicalização política com (Getúlio) Vargas. Fracassa porque o exército vence militarmente. De 1954 a 1964 é a segunda tentativa de tomada do poder, que fracassa especialmente entre 61 e 64, com a radicalização após a renúncia do Jânio, a assunção do João Goulart etc. De 1967/68 a 1974 é a tentativa através da esquerda armada, os grupos de guerrilha urbana, sobretudo, derrotados militarmente. Então (de acordo com o Orvil) a esquerda faz uma autocrítica e decide mudar de estratégia. Em lugar de recorrer às armas, a esquerda principiará a fazer uma infiltração em todas as instituições. A esquerda (de acordo com essa visão) começou a se infiltrar na imprensa, na televisão, em todos os meios da cultura e sobretudo nas universidades e na educação como um todo. Com a finalidade de fazer com que a Revolução ocorresse não pelo atrito das armas mas pelo convencimento dos corações e mentes. Mas para que serve esse discurso? Aqui as duas pontas se atam. A Doutrina de Segurança Nacional prevê a identificação do inimigo interno para a sua eliminação. Tudo é válido porque o inimigo é o comunista. O comunista terrível, o comunismo que suprimirá as liberdades. O que permite aos bolsonaristas, em 2020, lançar mão de um silogismo absurdo: para restaurar a liberdade, intervenção militar.
E o terceiro elemento ao qual o senhor se referiu?
O terceiro elemento é o que eu chamo no livro de sistema de crenças Olavo de Carvalho. Porque a pergunta é uma só: como foi que essas idéias se difundiram? Difundiram-se porque desde a década de 1990 o Olavo de Carvalho principiou uma pregação que, de uma certa forma, tornou a matriz narrativa do Orvil muito mais sofisticada. Mas, em última instância, quando você se dá conta da matriz ativista do Olavo de Carvalho, é a mesma do Orvil: se existe comunista, ele precisa ser eliminado, porque com o comunista não se pode dialogar, porque essencialmente todo comunista é dominado por uma absoluta falta de caráter. Quando você monta o Sistema de Crenças Olavo de Carvalho, você tem: “analfabetismo funcional”; “desonestidade intelectual”; “comunista tem de ser eliminado”; “existe uma vasta conspiração internacional chamada globalismo para retirar a autonomia das nações”; “existe uma vasta conspiração no Brasil para hegemonia total e doutrinação da esquerda de modo tal que a leitura do Antonio Gramsci permitiu dominar corações e mentes sem que nem soubessem que estavam sendo dominados”… Um sistema de crenças não pode ser combatido racionalmente. Não adianta eu perder o meu tempo explicando para as pessoas que os dados estão equivocados e que as interpretações, por isso, são delirantes. Quanto mais você ataca um sistema de crenças desde o seu exterior mais ele se fortalece internamente.
E qual seria o quarto elemento?
Houve uma coincidência inesperada entre esse tripé – Doutrina de Segurança Nacional, Orvil/anticomunismo, Sistema de Crenças Olavo de Carvalho – e os evangélicos no Brasil. A mentalidade neopentecostal é agônica, bélica e enxerga o dia a dia como uma batalha entre o bem que se deve alcançar e o mal que nos persegue. Ora, você liga qualquer programa neopentecostal (na televisão). Nesses programas, o princípio do qual se parte é que a vida nesta Terra é uma batalha constante entre ele, o Diabo, Diabo mesmo, Satanás, e nós. E a narrativa é sempre a mesma. Há uma queda provocada por ele, Satanás, que nos atormenta. E há uma redenção. A redenção é dada pela força da palavra de Deus. Você viu o vídeo em que o Silas Malafaia, logo depois da eleição, fazia uma espécie apresentação do Jair Bolsonaro ao templo? Para mim e para você, pareceria uma humilhação. Para os 40 milhões de evangélicos não é. É uma consagração. É que Bolsonaro, que não dispunha de dinheiro, não dispunha de estrutura partidária, que era isolado, que era sozinho, venceu. Por quê? Só tem uma explicação (para os evangélicos), uma espécie de Teologia da Prosperidade aplicada a política. Ele venceu porque é ungido de Deus. Sabe quantos votos Bolsonaro teve entre evangélicos? Vinte e um milhões.
A combinação desses quatro elementos explica a resiliência do bolsonarismo, mesmo em um governo que parece mais empenhado em conflitos do que em governar?
Tem um paradoxo, e isso é bem importante. A guerra cultural bolsonarista permitiu o êxito realmente surpreendente, pela força do bolsonarismo. Então, a guerra cultural bolsonarista assegurou ao bolsonarismo uma força que o Bolsonaro nunca teve. Agora, há uma armadilha nisso. É que a guerra cultural bolsonarista assegura o êxito incomum do bolsonarismo como movimento político capaz de causar paixão mobilizadora, e, ao mesmo tempo, não permite que haja governo. Porque não há guerra cultural bolsonarista sem a invenção, em série, de inimigos. É uma ironia perversa. Desde que o governo começou, faça uma cronologia dos bodes expiatórios. Começou lá atrás com Gustavo Bebbiano, terminou agora com Sérgio Moro.
Então a guerra cultural é o objetivo do governo?
A guerra cultural é o eixo do governo. Por isso mesmo, a guerra cultural não deixa que haja governo. Esse é o paradoxo. Este governo vai entrar em colapso administrativo. A guerra cultural assegura o êxito do bolsonarismo e impossibilita a ação do governo.
Isso explica a ação, ou não-ação, do governo as pandemia?
Justamente, exatamente. Eu não estou dizendo isso de maneira metafórica, estou dizendo de maneira concreta. O que está acontecendo agora na pandemia é desastroso. Estamos falando de uma quantidade inimaginável de pessoas neste País que não precisavam morrer. Não era necessário. Mas qual é a atitude de Bolsonaro? O Bolsonaro nunca foi, pelo menos nunca vimos, visitando um hospital para prestar solidariedade às famílias e para agradecer aos profissionais de saúde. Já vimos isso? Mas vimos o Bolsonaro, nas suas lives, receitar remédio! Em lugar de administrar a crise, de vislumbrar um futuro difícil e se antecipar a ele, o Bolsonaro gasta o tempo inteiro criando inimigos políticos. Ou seja: o que temos é bolsonarismo em excesso para governo em absoluta ausência. Não temos governo, e não teremos governo enquanto durar a guerra cultural bolsonarista.
O senhor cogitou que os grupos digitais bolsonaristas ficariam mais extremistas, não?
Estão ficando. E não somente isso, as milícias digitais estão indo para as ruas. O caso absurdo deste grupo dos 300… Aqui a coisa fica séria. Na minha hipótese original, antes do surto desta peste, eu imaginava que o Brasil seguiria até 2022 em uma disputa insana de narrativas. Mas, com a presença de uma peste, nós, seres humanos, temos um encontro marcado com aquilo que não queremos jamais encontrar, que é a finitude, a morte. É muito claro: a morte não é um meme, e e vida não se reduz à disputa de narrativas. Então, infelizmente, esta peste nos confronta com a necessidade de observar com cuidado dados objetivos da realidade. Diante de uma peste, diante da morte, não temos o direito de brincar de disputas narrativas. Os índices de rejeição do Bolsonaro aumentarão bastante, e as perspectivas não são muito boas. Porque não se trata apenas da queda de um presidente. Isso já aconteceu entre nós: Fernando Collor, Dilma Rousseff. Não se trata do final melancólico de uma presidência – já ocorreu conosco, Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de um presidente cujos filhos enfrentam sérios problemas na Justiça. Bolsonaro terá uma resistência enorme a reconhecer o término do seu governo. Porque o que está envolvido, para ele, em última instância, não é o Brasil, não é projeto de Brasil. O que está envolvido é a defesa da família. Precisamos considerar que esse grupo dos 300, que eram 30… Temos de resistir à tentação de reduzi-los à caricatura. São o embrião de algo muito perigoso, que é a formação de milícias paramilitares. As polícias militares têm uma forte inclinação bolsonarista. Haverá um recrudescimento muito grande da tensão, porque quando a peste… Eu prefiro falar peste, para que as pessoas compreendam. Então, a peste, quando estiver controlada, a economia estará em uma recessão profunda, muito provavelmente, pelas projeções, será a mais séria recessão da história brasileira, superior aos dois PIBs negativos do governo Dilma Rousseff em 2014 e 2015, o desemprego aumentará muito, o que significa que a tensão social estará em uma escala muito alta. Nesse momento, o governo Bolsonaro estará provavelmente em desintegração acelerada, ficará cada vez mais claro, a não ser para os apoiadores fanáticos, que o bolsonarismo, quanto mais é exitoso, mais fracassado é o governo do Bolsonaro. Nunca vimos qual seria o projeto do Bolsonaro para o País. Nunca houve uma apresentação formal. O governo Bolsonaro é uma arquitetura da destruição. Por volta de setembro, outubro, acho que vamos estar em uma situação como há décadas não imaginávamos que poderíamos viver.
Qual deverá ser o efeito sobre o bolsonarismo da prisão de Fabrício Queiroz, em um caso que envolve um dos filhos do presidente?
A prisão do Queiroz e seus desdobramentos deverão acelerar a distinção entre apoiadores e eventuais eleitores de Bolsonaro. Estes últimos votaram menos no capitão e muito mais contra o PT. Eles certamente abandonarão, se já não abandonaram o barco, se a corrupção bolsonarista for comprovada. Por outro lado, os apoiadores, imagino que 15%, talvez 20% dos 57 milhões de votos de Bolsonaro, tendem a negar qualquer evidência e permanecer fiéis ao bolsonarismo.