Bolsonaro penaliza Nordeste “segurando” Bolsa Família
Foto: Cida de Oliveira, RBA
O Bolsa Família atendeu menos famílias nas regiões Norte e Nordeste em maio deste ano do que no mesmo mês de 2019, justamente no momento em que o governo avalia prorrogar o auxílio emergencial e economistas falam em criar uma renda básica permanente para reduzir as desigualdades sociais.
Nas regiões mais ricas do país, o Sul e o Sudeste, houve um aumento no número de beneficiários, considerando o mesmo período.
Há um ano, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) iniciou uma sequência de cortes de famílias e praticamente travou a entrada de novos beneficiários.
Com o afrouxamento do Orçamento neste ano por causa da pandemia, mais dinheiro foi destinado ao programa e o governo atende a mais pessoas carentes. Mas a fila de espera ainda persiste. São 433 mil famílias aptas a receber o benefício e que ainda aguardam liberação, segundo dados obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação.
Esta é a primeira vez que o Ministério da Cidadania revela oficialmente o tamanho da fila. Desde outubro do ano passado, quando a Folha mostrou o enxugamento no Bolsa Família, o governo se recusava a apresentar informações à imprensa e à Câmara, que cobrava respostas.
Sem dinheiro, a equipe de Bolsonaro passou a controlar o acesso ao programa a partir de junho de 2019. A fila chegou a 1 milhão de famílias em dezembro do ano passado e, no primeiro trimestre de 2020, a 1,6 milhão, segundo técnicos do governo que não quiseram ser identificados.
O valor extra para o Bolsa Família na pandemia permitiu que o Ministério da Cidadania incluísse cerca de 1,2 milhão de famílias. Isso, contudo, não representou uma retomada do programa ao período anterior aos cortes.
Norte e Nordeste ainda não se recuperaram totalmente (queda de aproximadamente 1,5%), enquanto que Sul e Sudeste registraram uma ampliação da cobertura —de 1,21% e 1,33%, respectivamente.
Portanto, a fila de espera remanescente penaliza mais os estados das regiões mais pobres. O Ministério da Cidadania diz que o sistema para incluir famílias é automático e leva em consideração um modelo com a estimativa de pobreza em cada estado.
O governo, porém, usa um mecanismo estatístico com base em dados colhidos no Censo de 2010, realizado pelo IBGE. Na época, foi calculado que 13,8 milhões de lares se encaixam em situação de vulnerabilidade de renda.
“Definiu-se, assim, o número estimado de famílias pobres por município, servindo de parâmetro para as concessões de benefício do Bolsa Família atualmente”, diz a pasta.
Hoje, o programa atende a 14,3 milhões de lares —sem considerar a fila de espera.
A tabela usada pelo governo aponta, por exemplo, que, em março, quando muitos estados do Nordeste registraram a menor cobertura dos últimos anos, a região tinha 105% dos benefícios estimados no sistema.
Ou seja, o Bolsa Família atendia mais do que o esperado pelo modelo do governo, enquanto a fila de espera atingia nível bastante elevado.
O mesmo aconteceu com o Norte —mas em alguns estados da região, como Rondônia, a estatística ainda indicava déficit de cobertura.
Por isso, na hora que o programa foi destravado, em abril por causa do coronavírus, a liberação foi maior para as outras regiões —o Sul tinha, em março, uma cobertura de 73% do parâmetro calculado há dez anos, e o Sudeste, de 84%.
“Isso precisa ser ajustado. O IBGE tem estudos mais recentes. Por exemplo, a Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios], que é menos ampla que o Censo, mas que serviria para reestimar a distribuição da pobreza”, avalia Maurício Bugarin, professor do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) e que já fez um estudo sobre a qualidade do gasto público no Bolsa Família.
Para aprimorar o programa, ele sugere uma ampliação do orçamento. Assim, seria possível criar medidas que estimulem famílias a se tornarem independentes, com acesso a microcrédito e educação financeira.
O governo estuda uma reformulação dessa política social desde do primeiro ano da atual gestão, mas, até hoje, não foi lançado. O Bolsa Família é o carro-chefe dos programas sociais do governo e transfere renda diretamente para os mais pobres. A fila de espera se forma quando as respostas demoram mais de 45 dias.
O prazo vinha sendo cumprido desde agosto de 2017, durante a gestão de Michel Temer (MDB). Mas, por falta de recursos, o programa não consegue cobrir a todos desde junho do ano passado.
O Bolsa Família atende a famílias com filhos de 0 a 17 anos e que vivem em situação de extrema pobreza, com renda per capita de até R$ 89 mensais, e pobreza, com renda entre R$ 89,01 e R$ 178 por mês. O benefício médio foi de R$ 191,86 até março.
Temporariamente, durante a pandemia, o valor depositado a quase todas as famílias será o mesmo do auxílio emergencial dado a trabalhadores informais e microempreendedores —de R$ 600.
Técnicos do governo temem que, sem a ampliação do Bolsa Família, a fila aumente ainda mais. Mais pessoas devem sofrer corte na renda por causa da crise econômica e entrar na faixa considerada pobre ou extremamente pobre, que tem direito à transferência.
Assim que estourou a pandemia, Onyx Lorenzoni, recém-transferido para o Ministério da Cidadania, anunciou que em abril a cobertura do Bolsa Família, após sofrer sucessivos cortes, seria recorde. Mas não foi.
Foram 14,27 milhões de famílias beneficiadas em abril, contra 14,34 milhões em maio do ano passado. Em maio de 2020, a cobertura passou para 14,28 milhões, ainda sem retomar o patamar anterior à maior sequência de cortes na história do programa.