Descontentamento militar com Bolsonaro começa a ser público

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Foto: Gabriela Biló/Estadão

“É inaceitável tentar envolver as Forças Armadas em uma ruptura.” A frase foi dita pelo tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, mas lembra o exemplo de outras, ouvidas nos Estados Unidos. A primeira foi: “Quando me tornei militar, há 50 anos, fiz um juramento de apoiar e defender a Constituição”. Ela prossegue. “Nunca sonhei que tropas que fizeram o mesmo juramento que eu pudessem receber a ordem, sob quaisquer circunstâncias, de violar os direitos constitucionais de seus compatriotas.” Quem a disse foi James Mattis, um general de quatro estrelas, com três guerras nas costas e ex-secretário da Defesa do presidente Donald Trump.

Pela primeira vez na história recente dos EUA, um presidente quis usar o Exército para controlar manifestações populares, garantidas pela Primeira Emenda. Em poucos dias, Trump se tornou um pária entre militares comprometidos com a Constituição. Mattis escreveu sobre o presidente: “É o primeiro líder em minha vida que não tenta unir o povo americano e nem mesmo pretende tentar fazer isso. Em vez disso, ele busca dividir-nos. Nós estamos testemunhando as consequências de três anos de seu esforço deliberado, três anos sem uma liderança madura.”

O exemplo de Mattis frutificou. Foi seguido por Colin Powell, outro ex-secretário da Defesa e republicano, que anunciou que votará no democrata Joe Biden. Quase uma centena de líderes militares assinou um manifesto contra Trump. “Militarizar a nossa resposta, como nós testemunhamos em Washington, DC, cria um conflito – um falso conflito – entre o mundo militar e o civil. Isso corrói a moral que assegura um vínculo confiável entre homens e mulheres de uniforme e a sociedade que eles juraram proteger e da qual eles mesmos são uma parte”, escreveu Mattis.

Desde que começaram os atritos de Bolsonaro com o Supremo Tribunal Federal ou desde que seus filhos e amigos são alvo de investigações por desvio de verbas e de malversação do dinheiro público, subsidiando mentiras e propaganda política disfarçada de jornalismo, quase duas dezenas de manifestos foram feitos por militares que só tiveram olhos para decisões monocráticas de ministros do Supremo, mas não se lembraram de lutar contra o odioso privilégio de estar acima da lei, de não ser investigado, de povoar as instituições com amigos que engavetem bandalheiras.

Alguns generais brasileiros enviam artigos e mensagens aos amigos com textos que fariam corar seus pares americanos. Na semana passada, Maynard Santa Rosa – ex-secretário de Assuntos Estratégicos de Bolsonaro – escreveu O Arquétipo Cincinato. Nele, insinua a tese de que, no inconsciente da população brasileira, está a aceitação do homem providencial, da liderança forte, do salvador da República, personificado no ditador romano Lúcio Quíncio Cincinato.

Santa Rosa parece não perceber, na história de Roma (Ab Urbi Condita Libri), escrita por Tito Lívio, a devoção de Cincinato pelo bem comum, repreendendo tanto os tribunos da plebe por suas sedições quanto os patrícios que lhe ofereceram a reeleição como cônsul, rompendo com as regras da República. Para Lívio, as camadas superiores deveriam situar-se diante da sociedade como um exemplo a ser seguido, cujo comportamento moralmente elevado legitimaria a posição que desfrutavam.

Em sua obra Os Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel disse que a ditadura fazia bem à Roma, desde que o poder não fosse usurpado, em vez de livremente delegado. Eis um detalhe que passou longe do texto de Santa Rosa: são os responsáveis pela República que vão buscar Cincinato em sua propriedade e não as legiões. Muito menos um general que escreve: “Na hipótese de se chegar ao comprometimento da lei e da ordem, resta o remédio do Art. 142 da Constituição Federal, e o acatamento das Forças Armadas pela opinião pública será essencial na pacificação. Afinal, é no inconsciente coletivo do povo que reside a fé no braço forte e a confiança na mão amiga.”

É constrangedor testemunhar militares que ainda acreditam que o povo apoiaria a intentona bolsonarista. O leitor viu aqui que Ulysses Guimarães, ao promulgar a Constituição, chamou de traidores da Pátria aqueles que atentam contra a Carta Magna. É nesse contexto que surge o exemplo do tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla. Ex-comandante da Escola Superior de Guerra (ESG) e ex-presidente do Superior Tribunal Militar, ele disse: “As Forças Armadas não podem se meter em política. Elas são instituições de Estado e não de governo. Não deve se meter em política pessoal”. O brigadeiro mandou mensagens aos amigos, alertando-os sobre as iniciativas dos militares ligados ao Planalto.”Quem gera as crises é o presidente.”

Ferolla representa o distanciamento de parte dos brigadeiros do governo Bolsonaro, ainda mais depois do decreto, que acabou revogado pelo presidente nesta segunda-feira, 8, após as críticas, que dava ao Exército o direito de ter aviação de asa fixas, enquanto os aviões da FAB ficam em solo por falta de combustível. “Heleno está sendo uma decepção. Ele está em uma posição em que devia pensar duas vezes antes de abrir a boca, pois deve dar o exemplo.” Ontem, apesar de o Comando da PM de São Paulo dizer o contrário, o general Augusto Heleno tentou vincular os atos de vandalismo de uns poucos, após a manifestação pela democracia, à maioria das pessoas que foi pacificamente protestar contra Bolsonaro.

“Eu, como ministro do STM, julgava pessoas e não ideologias”, afirmou Ferolla. Para ele, um governante não pode escolher um delegado da PF porque é amigo do presidente ou do ministro, nem juiz pode se meter em política. Todos devem dar o exemplo. O brigadeiro conhece de longa data o guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho. “Diga-me: Como é possível vir com essa conversa de Terra plana nessa altura do campeonato? Estamos no século 21. E tem dois amigos dele no governo: o ministro da Educação, esse Weintraub, e o das Relações Exteriores, o Ernesto Araújo.”

Ferolla testemunhou a fala de Abraham Weintraub na posse do reitor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), Anderson Ribeiro Correia. “Um discurso que qualquer caminhoneiro faria melhor.” Por fim, o brigadeiro conta sua impressão sobre o vídeo da reunião presidencial do dia 22 de abril: “Esse vídeo é um exemplo: dentro de um prostíbulo seria imoral.” E Ferolla explica por quê. “Cria-se um ambiente em que ninguém respeita nada. Isso é falta de liderança. O chefe tem de dar o exemplo.” É aqui onde Trump e Bolsonaro falharam miseravelmente: o exemplo. O caso de Bolsonaro seria agravado por lideranças militares que o cercam e assistem a tudo em silêncio. E, quando falam, apenas repetem o radicalismo, as bravatas e os desmandos do bolsonarismo.

“Onde um general da intendência acha que pode ser ministro da Saúde sem ouvir os médicos?”, indaga um coronel intendente sobre o general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, que loteou a pasta entre militares. Pazuello pode saber como entregar um garrafão de água em um pelotão de fronteira em Roraima, mas está perdendo a guerra contra o coronavírus. Seu ministério parece acreditar que a Nação não precisa saber da gravidade do momento. Alguém lhe deu o “bizu” de que basta não contar os mortos ou contar de forma diferente. Esse é o exemplo que o general de Bolsonaro dá à Nação.

Estadão