Historiador critica comparações de Weintraub sobre nazismo
Foto: US HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM
O uso de um evento histórico e marcante do período nazista como foi a Noite dos Cristais para caracterizar um fato político cotidiano brasileiro é “absurdo e inconsequente”, na opinião do historiador Avraham Milgram, pesquisador que trabalhou por mais de três décadas do Museu Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Israel.
Milgram, que nasceu na Argentina, morou no Brasil desde pequeno e emigrou para Israel em 1973, foi consultado pela BBC News Brasil a respeito de declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub: em 27 de maio, quando a Polícia Federal fez uma operação de busca e apreensão a alvos próximos ao governo de Jair Bolsonaro, dentro do inquérito de combate a fake news que corre no Supremo Tribunal Federal, o ministro afirmou se tratar do “dia da infâmia, vergonha nacional, e será lembrado como a Noite dos Cristais brasileira”.
Para o historiador Milgram, esse tipo de comparação “desvaloriza a memória do Holocausto”.
“Desvirtua a essência do que houve em termos de atos anti-judaicos da Alemanha naquela época. E, por outro lado, engrandece e aumenta de forma exponencial um ato de caráter político local (brasileiro) destituído de essência racial, étnica, nacional e outras particularidades que há nas tendências genocidas nazistas”, diz o pesquisador.
“Há aqui uma coisa perigosa do uso e abuso da memória do Holocausto, da história geral e anti-judaica em particular, para qualquer coisa.”
A fala de Weintraub também foi criticada por entidades judaicas brasileiras e, indiretamente, pela Embaixada de Israel, que pediu, em nota, “que a questão do Holocausto como também o povo judeu ou judaísmo fiquem à margem do diálogo político cotidiano e as disputas entre os lados no jogo ideológico”.
A reportagem voltou a conversar com Milgram para perguntar a respeito da declaração atribuída pela “Folha de S.Paulo” ao ministro Celso de Mello, comparando o Brasil atual ao período que antecedeu a ascensão de Hitler, para saber se a mesma avaliação do historiador se aplicava à declaração do decano do STF.
Milgram vê muitas diferenças entre as circunstâncias históricas, embora acredite que haja, no Brasil, um risco de recaída maior ao autoritarismo.
No Museu do Holocausto, Milgram coordenou múltiplos estudos e editou a Enciclopédia dos Justos Entre as Nações (em referência aos não judeus que arriscaram suas vidas para salvar judeus na época do Holocausto). Fez bacharelado, mestrado e doutorado na Universidade Hebraica e publicou, no Brasil e em Portugal, livros sobre a história judaica.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele fala da importância histórica da Noite dos Cristais dentro do processo de perseguição dos judeus pelo regime nazista e do “prejuízo” causado por comparações equivocadas – feitas por todos os lados do espectro político – com esse período histórico.
BBC News Brasil – O ministro da Educação, Abraham Weintraub, comparou a Noite dos Cristais com uma operação da Polícia Federal. Como isso costuma ser visto por pessoas que viveram o Holocausto e por pessoas que o estudam?
Avraham Milgram – Essa declaração é totalmente absurda e inconsequente do ponto de vista histórico e da memória do Holocausto. Essa projeção da Noite dos Cristais, de 1938, para o que o ocorreu (na operação autorizada pelo) Supremo Federal Tribunal e o Bolsonaro é totalmente descabida.
Esse assunto não teve repercussão aqui em Israel, porque o coronavírus toma a atenção praticamente de tudo e porque o país está mais orientado aos EUA do que à América Latina. (…)
Mas em referência à Noite dos Cristais: foi o pogrom – evento violento de massas contra judeus que acabava com mortes e depredações. Ocorreu de 9 a 10 de novembro de 1938 em toda a Alemanha e foi um ato organizado pelo Partido Nacional Socialista, o único que havia, o partido de Hitler.
Foi algo coordenado a tal ponto que em toda a Alemanha, na Áustria e nos Sudetos Tchecos (região montanhosa entre República Tcheca, Alemanha e Polônia), já anexados, quase todas as sinagogas da maioria absoluta das comunidades foram queimadas, em um ato criminoso de caráter racial antissemita.
E no dia seguinte 30 mil judeus foram levados para campos de concentração.
Os negócios de judeus foram depredados e quebrados. Da quantidade de vidros que se encontrava nas calçadas vem o nome de Noite dos Cristais Quebrados.
Foi um evento impressionante na sua magnitude, porque ocorreu em todo o Grande Reich (Alemanha, Áustria e Sudetos) ao mesmo tempo, e era impossível que alguém não soubesse o que ocorria.
Só em Berlim foram queimadas 28 sinagogas, edifícios grandes, imponentes, e todo o mundo via a fumaça. Foi uma tragédia muito grande. (…) Mesmo para judeus liberais, as sinagogas eram o símbolo da identidade judaica.
Os judeus, a partir desse pogrom, esse episódio violento e trágico, entenderam que não havia mais o que fazer na Alemanha. Mesmo os judeus que tinham alguma esperança de encontrar seu lugar nessa nova ordem fascista-nazista se desiludiram e buscaram abandonar a Alemanha e eventualmente a Europa, e tentar visto de imigração para qualquer lugar do mundo.
Foi um evento que marcou a memória dos judeus, mas também dos alemães. Veja só: em todos os países se comemora uma vez ao ano a memória do Holocausto em 27 de janeiro, data da libertação de Auschwitz. Na Alemanha, o dia 9 de novembro é o dia mais simbólico da tragédia dos judeus alemães, devido às consequências e resultados da Noite dos Cristais Quebrados, além de ser também o dia em que Hitler tentou conquistar o poder, dia da rendição da Alemanha (na Primeira Guerra, em 1918) e da queda do Muro de Berlim. Uma concentração de efemérides.
A associação descabida do ministro da Educação é, na minha opinião, uma grande ignorância e porque ele buscou um símbolo muito forte para associar a instituição que ele queria desacreditar aos nazistas, que são o pior que havia e o pior que houve, e até hoje nenhum crime superou o dos nazistas – digo agora não apenas em relação à Noite dos Cristais, mas do processo de 1933 a 1945, com o assassinato da maioria dos judeus da Europa.
BBC News Brasil – O quão perigoso é se fazer comparações do tipo para a memória do Holocausto?
Milgram – É perigoso no sentido de desvalorizar a memória do Holocausto, desvirtua a essência do que houve em termos de atos anti-judaicos da Alemanha naquela época. E, por outro lado, engrandece e aumenta de forma exponencial um ato de caráter político local (brasileiro) destituído de essência racial, étnica, nacional e outras particularidades que há nas tendências genocidas nazistas.
É perigoso no sentido da falta de proporção, de conscientização e de honestidade intelectual, de comparar duas coisas incomparáveis sob qualquer ponto de vista.
Há aqui uma coisa perigosa, já que você usou o termo perigoso, do uso e abuso da memória do Holocausto, da história geral e anti-judaica em particular, para qualquer coisa.
Não digo que essa questão política não seja importante, de jeito nenhum. (…) Esse debate é importante na política brasileira. Respeito tudo isso. (O problema é) o uso, e principalmente o abuso pelo ministro da Educação — que precisa ser educado —, de falar uma aberração desse tamanho.
BBC News Brasil – À medida que o tempo passa e nos distanciamos do Holocausto em si, e a memória está menos nas pessoas e mais em como os eventos são contados, o quanto isso interfere na percepção histórica e nos erros históricos sobre esse período?
Milgram – Apesar de terem passado quase 90 anos desde o início do Holocausto, a memória continua não só viva, como tem uma presença muito grande na cultura ocidental em geral, em especial nos países europeus. (…)
(Na época da Segunda Guerra), havia setores das sociedades europeias que colaboraram com o fascismo local, como na França, na Hungria, na Eslováquia, na Croácia e em outros lugares. Até hoje há polêmicas e discussões em relação a em que nível os franceses colaboraram com os alemães.
Houve países em que quem fez todo o trabalho de implementar a política de discriminação racial foram os locais. Isso correu na Hungria, na Ucrânia. É um problema central na história e na memória desses países.
Mas (sobre o distanciamento histórico) estou percebendo algo na esfera pública brasileira: que tanto a direita quanto a esquerda têm usado motivos e imagens do Terceiro Reich e da Alemanha para atacar e criticar o campo oposto. E o que falei em relação ao Abraham Weintraub critico também e recrimino em relação à esquerda. Nisso quero ser justo e ter o bom senso de dizer a ambos que, por favor, deixem as vítimas em paz e não façam comparações macabras com a única razão de desacreditar o campo oposto e inimigo.
Vejo muita ignorância nas opiniões e nas polêmicas. Não se trata tanto da memória aqui, mas da politização da memória.
A memória é fundamental para aprender do Holocausto e não repetir fenômenos que ocorreram na Europa nos anos 1930 e 40, contra a minoria judaica e outras vítimas – os judeus foram a principal, mas não foram as únicas vítimas.
As principais lições, esses políticos que estão usando e abusando da história, eles não aprenderam: a importância de uma sociedade civil, de direitos humanos, da democracia, da dignidade humana e da decência. E tomar cuidado com ofender o oponente e qualquer um.
Nisso acho que o uso do Holocausto não é o principal que está ocorrendo no Brasil, mas sim a incapacidade — ou falta de vontade — de aprender o necessário desse capítulo histórico para melhorar a vida civil e coletiva.
Associações como a feita por Weintraub (significam) que ele não aprendeu nada, pelo contrário. É simplesmente o que ocorreu na Alemanha contra judeus: desvirtuar a verdade, falta de civismo, de respeito.
Você falou antes em perigoso, mas acho que o uso de abuso da história é mais do que tudo prejudicial.
BBC News Brasil – Em nossa entrevista anterior, um ano atrás, o senhor falava da diferença entre o populismo e o fascismo, e das comparações feitas atualmente com o período fascista. Isso também é uma incorreção histórica?
Milgram – Acho que hoje em dia se fala mais em populismo do que em fascismo. Em geral a esquerda tem uma tendência maior em usar a palavra fascismo; a sensibilidade salta e (comparam) com o fascismo.
Mas o fenômeno de hoje em dia é mais populista do que fascista. Porque para o fascismo era fundamental destruir o sistema parlamentar, republicano, democrático e civil.
O sistema populista convive com todas essas instituições que mencionei. Convive, se baseia nele e o explora para objetivos que são antidemocráticos e anticivis, como o culto à personalidade, culto ao líder, concentração de poder, e ao mesmo tempo mantendo as instituições, mas desarmando-as e descaracterizando-as, sem eliminá-las.
O fascismo foi mais direto. Substituiu uma ordem por outra.
BBC News Brasil – A “Folha de S.Paulo” noticiou que o ministro Celso de Mello, do STF, escreveu mensagem a colegas da Corte comparando o Brasil atual ao da ascensão de Hitler: “Guardadas as devidas proporções, o ‘ovo da serpente’, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (1919-33), parece estar prestes a eclodir no Brasil. É preciso resistir à destruição da ordem democrática, para evitar o que ocorreu na República de Weimar quando Hitler, após eleito pelo voto popular e posteriormente nomeado (…) chanceler da Alemanha, não hesitou em romper e nulificar a progressista, democrática e inovadora Constituição de Weimar, impondo ao país um sistema totalitário de poder”. É possível traçar paralelo entre o Brasil de hoje e aquele período?
Milgram – (…) Sobre o enfraquecimento das instituições democráticas e a criação de um clima em que a exceção, a força e o autoritarismo imperam e essa erosão da sociedade civil, há uma grande diferença entre Weimar e Brasil. Porque Weimar (como era conhecida a República alemã entre 1919 e 33) foi corroída por grupos tanto da direita quanto da esquerda que não estavam no poder e queriam atingir o poder.
No Brasil — e não só no Brasil, mas nos EUA, Israel, Hungria, Polônia, ou seja, onde há tendências políticas populistas —, a democracia, a sociedade civil e as defesas civis estão sendo corroídas não por grupos de oposição que querem tomar o poder, mas pelos grupos que estão no poder, foram eleitos democraticamente e tendem a corroer e enfraquecer as instituições democráticas.
Na República de Weimar, isso era feito para desacreditar o governo, de baixo para cima, enquanto no Brasil é de cima para baixo.
Se há algo que posso entender da declaração do ministro Celso é um alarme ao enfraquecimento, à corrosão e ao perigo da diminuição da sociedade civil e instituições democráticas, com a grande diferença que a República de Weimar e sua Constituição eram contestadas tanto pela direita quanto pela esquerda.
No Brasil, não há isso, as instituições democráticas estão sendo contestadas pelo próprio presidente e pessoas em sua volta. (…) No Brasil e nos países que eu mencionei, a incitação vem do próprio corpo governamental contra minorias (imigrantes, por exemplo) ou contra inimigos reais ou virtuais, que são chamados de esquerda ou comunista.
BBC News Brasil – A despeito das diferenças que o senhor está mencionando, acha que há o risco de corrosão das instituições, como foi na República de Weimar, ou vê certo exagero nessa comparação?
Milgram – Não acompanho diariamente o que acontece no Brasil, mas as ameaças e o discurso de louvar a ditadura e de voltar à ditadura parece um anúncio de uma vontade de ir em direção a isso. Nisso, o Brasil é um pouco diferente de todos os outros países (de governantes populistas) que eu mencionei.
Como mencionei, nos regimes populistas, à diferença do fascismo, não é necessário fazer golpes para instituir ditaduras, porque o sistema autoritário coexiste dentro de um formato democrático. Mas no Brasil me refiro apenas a essa música de fundo – que às vezes não é de fundo, está na frente do palco, uma vez que o presidente é alguém que apoiou a ditadura e na época do impeachment de Dilma (Rousseff) elogiou o torturador (coronel Ustra). Nesse sentido, acho que o Brasil é uma exceção nos regimes populistas antiliberais e antidemocratas de hoje em dia.
BBC News Brasil – Com um risco maior de recaída antidemocrática?
Milgram – Sim, considerando a grande crise que o Brasil está passando, na economia, de diferenças políticas entre blocos de esquerda e direita e, em cima disso, o problema do coronavírus. São problemas que podem ser explorados para constituir essa volta ao que era nos anos 1960, 70 e início dos 80.