Inquérito de Bolsonaro na PF é mais minucioso
Foto: Evaristo Sá / AFP
Uma cena incomum em audiências de ações judiciais recém-abertas foi incorporada à dinâmica do inquérito que investiga se o presidente Jair Bolsonaro interveio politicamente na Polícia Federal.
Advogados dos alvos, além de liberados a acompanhar depoimentos de testemunhas, são autorizados a fazer questionamentos a quem é ouvido pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República.
Foi assim nos depoimentos dos ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil), por exemplo.
“Dada a palavra à defesa do ex-ministro Sergio Moro neste ato, foi perguntado se o delegado Alexandre Ramagem tem uma sala no Palácio do Planalto”, afirma, por exemplo, a transcrição da audiência com o ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).
Esse tipo de “sabatina” de uma testemunha ou investigado é praxe durante depoimentos de processos já em andamento, nos quais juiz, acusação e defensores têm direito a fazer perguntas.
Em inquéritos (investigações em andamento, ainda sem acusação formal), como é o caso do procedimento a respeito do presidente, a iniciativa é incomum, segundo advogados ouvidos pela Folha, que entendem que a medida contribui para contemplar o princípio da ampla defesa.
Para o advogado criminalista Hugo Leonardo, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, esse tipo de abertura tende a tornar o depoimento mais esclarecedor.
“O contraditório, que se observa nesse inquérito [sobre Bolsonaro], só acontece na fase processual, e não na investigação, que é a fase de um procedimento administrativo. Com a ação penal já aberta, é obrigatório que aconteça dessa forma.”
A lei federal que regulamenta o exercício da advocacia prevê que o defensor assista a seu cliente durante a apuração de infrações, mas, de acordo com advogados, não há detalhamento específico sobre a possibilidade de a defesa de um investigado fazer perguntas.
“Deveria ser mais comum do que é. É um direito do advogado participar das investigações. Mas, em geral, até por uma questão histórica, como a nossa investigação sempre teve uma tradição inquisitorial, não é comum que os advogados possam acompanhar”, diz Antonio Santoro, professor de direito processual penal da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Além disso, é frequente que o alvo da polícia nem sequer saiba que está sendo investigado em inquérito —era assim, por exemplo, nos trabalhos da Lava Jato desenvolvidos antes da deflagração das fases. Nesses tipos de investigação, o fator surpresa é usado como trunfo por policiais e promotores.
O inquérito a respeito de Bolsonaro tramita publicamente no Supremo, sob relatoria do ministro Celso de Mello, mas partes da investigação estão protegidas por sigilo. Despachos do ministro e manifestações do Ministério Público, que tratam, por exemplo, dos depoimentos a serem tomados, são abertas.
O caso envolvendo Moro e Bolsonaro tem uma peculiaridade: há uma disputa de versões entre os investigados —aí incluindo também o ex-juiz paranaense. Nessas circunstâncias, tende a ganhar importância o contraditório entre as partes.
Moro fez relato em que acusa o presidente de interferência indevida na Polícia Federal, enquanto Bolsonaro fala que o ex-subordinado cobrava a indicação para uma vaga no Supremo Tribunal Federal.
Após apuração da Polícia Federal nesse inquérito, a PGR avalia se haverá acusação contra Bolsonaro. Caso isso ocorra, esse pedido vai para a Câmara, que precisa autorizar sua continuidade, com voto de dois terços.
Em caso de autorização, a denúncia vai ao STF —que, se aceitar a abertura de ação penal, leva ao afastamento automático do presidente por 180 dias, até uma solução sobre a condenação ou não do investigado.
Para a advogada criminalista Veronica Sterman, que atua em casos da Lava Jato, a iniciativa é benéfica.
“Como todo mundo pode fazer pergunta, gera um contraditório muito positivo, instrui melhor os investigadores. A autoridade policial vai formar um convencimento sobre a existência ou não de um delito. O advogado de defesa, ou mesmo do ofendido, se participa, pode trazer elementos, nas perguntas, que a polícia nem sequer vislumbrou.”
Qual a origem e o objetivo da investigação? A apuração foi aberta a pedido do PGR, Augusto Aras, após acusações de Moro de que o presidente queria intervir na PF. O foco, porém, é avançar sobre quais eram os possíveis interesses de Bolsonaro em investigações da corporação e se houve interferência com objetivos políticos nas apurações, o que o presidente nega.
Quais os possíveis crimes investigados? Aras citou oito crimes que podem ter sido cometidos: falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, obstrução de Justiça, corrupção passiva privilegiada, prevaricação, denunciação caluniosa e crime contra a honra. Nada impede, no entanto, que a investigação encontre outros crimes.
Houve interferência de Bolsonaro na PF? Sim. Embora tenha prometido publicamente carta branca a Moro para definir os cargos de comando da PF, o presidente demitiu em abril, contra a vontade dele, o então diretor-geral da corporação, Maurício Valeixo, e na sequência mudou a chefia do órgão no Rio.
Quais podem ser as consequências a Bolsonaro? O presidente pode ser denunciado pela PGR e, se a acusação for aceita pela Câmara e o STF abrir ação penal, ele será afastado por 180 dias, até o fim do julgamento.