Manifestações são criticadas por ignorar quarentena
Foto: Pam Santos
Enquanto o país está em meio à dura batalha de combater o vírus mais letal do século, pesadelos do passado voltaram a incomodar uma parte significativa da população brasileira. Os traumas são tão fortes e deixaram tantas cicatrizes que, mesmo com um micro-organismo que já matou mais de 35 mil pessoas e infectou aproximadamente 645 mil em constante proliferação pelo território nacional, essa parcela da sociedade se sentiu na obrigação de sair às ruas para mostrar que não pode ficar calada diante de ameaças à democracia.
Entretanto, há riscos nesse movimento, o principal deles bem visível: a aglomeração de pessoas, contrariando a política de isolamento social, preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que foi solapada por Jair Bolsonaro. Os infectologistas e os especialistas em saúde pública afirmam que usar máscaras no meio da multidão pouco resolve contra a proliferação da covid-19. Se os apoiadores do presidente debocham da pandemia, tratam-na como uma “gripezinha” e nem se preocupam com qualquer proteção, os grupos contrários ainda não deram uma explicação convincente sobre por que agem de maneira semelhante –– em nome da causa, também formam multidões e marcham pelas ruas grudados uns aos outros.
Mas, aquilo que, de início, foi entendido como uma reação ao negacionismo bolsonarista, começa a ser visto como uma questão de saúde pública. E vozes que são respeitadas nos movimentos populares ou de esquerda começam a se insurgir contra os atos contra o governo. Uma delas é o rapper Emicida. Por uma rede social, e em vídeo, ele deu os motivos pelos quais não sairá às ruas hoje.
“Se vocês derem uma busca (pela internet), vão ver que vários infectologistas e epidemiologistas serios estão chamando isso de genocídio. Aguarda-se um crescimento de 150% (dos números da pandemia) nos próximos dias. A irresponsabilidade e a irracionalidade de quem tinha que conduzir esse país para um lugar melhor ainda vai matar muita gente. A contagem (de vítimas) não chegou ao máximo. Qualquer aglomeração, agora, por mais que sejam legítimos os nossos motivos, é pular na ciranda da necropolítica, levar uma onda de contágio pior do que essa que já está para dentro das comunidades onde vivem gente que amamos”, explicou.
Na última quinta-feira, um grupo de senadores de partidos de oposição ao Palácio do Planalto pediu para que a população não fosse às ruas hoje e justificou a posição com os números da pandemia, que vêm subindo exponencialmente. A nota foi assinada pelos partidos rede Sustentabilidade, PSB, PT, PDT e pelo líder do PSD na Casa, Otto Alencar (BA) –– cujo partido integra o chamado Centrão. Os parlamentares dizem que a presidência de Bolsonaro é “aliada do coronavírus” e que adiarão a ida às ruas “até que possamos, sem riscos, ocupá-las, em prol da população”.
“Não tendo o país ainda superado a pandemia, que agora avança em direção ao Brasil profundo, saindo das capitais e agravando nos interiores, precisamos redobrar os cuidados sanitários e ampliar a comunicação com a sociedade em prol do distanciamento social”, diz trecho da nota, elaborada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Um outro aspecto das manifestações contrárias ao governo chamam a atenção: a presença de várias torcidas organizadas de clubes de futebol, conhecidas pela violência com que tratam adeptos de outros times. Ainda que setores desses agrupamentos estejam unidos supostamente em nome da causa anti-bolsonarista, fato é que o Juizado Especial do Torcedor e dos Grandes Eventos, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, chegou a elaborar um ranking das mais violentas –– a Força Jovem do Vasco é a pior delas no Brasil, seguida das organizadas do Corinthians, do Fluminense e do Flamengo. O mais recente levantamento leva em conta o número de torcedores afastados dos estádios desde 2015 devido ao histórico de agressão que têm.
Na visão de especialistas, por mais que exista uma preocupação com a pandemia, há brasileiros que se cansaram das notas de repúdio e de panelaços ante as expressões agressivas e desqualificantes do presidente Jair Bolsonaro contra adversários, imprensa, mas, sobretudo, contra o fato de fingir que no Brasil a covid-19 grassa sem controle. Agregado a isso, estão extremamente incomodados com a permanente insurreição que o presidente propõe contra as instituições, ao atiçar seus apoiadores a favbor de medidas anti-democráticas.
“As pessoas chegaram a um ponto tão grande de indignação, que sabem que precisam fazer alguma coisa diante desse quadro. Elas entendem que é necessário um movimento reativo, como sair de casa para protestar, que serve para tirar esse privilégio de ocupar as ruas que foi do movimento bolsonarista nos últimos meses. Ou seja, ou elas dão uma resposta ou continuarão vendo o lado oposto ocupar todos os espaços públicos e emparedar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF)”, analisa o cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Geraldo Tadeu.
Para tentar desqualificar as manifestações, Bolsonaro investiu durante a semana passada em caracterizar os atos contra o governo “baderna” e os participantes como “terroristas, maconheiros e marginais”. O recado do presidente mobilizou ainda mais o seu grupo, que pode promover movimentos nos mesmos horários e locais dos protestos anti-fascistas ou até invadir as manifestações contrárias.
“Os manifestantes não estão lidando com um adversário político. Estão lidando com pessoas que têm defeito de caráter, que são violentas. Essa é a visão que propaga Bolsonaro. Ele não é democrata, jamais será. A declaração só incita ao ódio. Uma coisa é dizer que existem pessoas que não pensam como a gente, mas que têm esse direito. Outra é dizer que, do outro lado, só tem terrorista. Fica a impressão de que o governo Bolsonaro não foi feito para governar, mas para fazer militância”, acrescenta Tadeu.
Bolsonaro se diz preocupado com eventuais ataques ao patrimônio público, devido ao que aconteceu nas manifestações da semana passada em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Com base nisso, e temendo o número de manifestantes que devem sair às ruas, o chefe do Executivo conclamou às Polícias Militares a agirem com rigor e até levantou a possibilidade do uso da Força Nacional nos protestos, especialmente em Brasília. No entanto, a possibilidade foi vetada, ao menos por enquanto, por parte do Governo do Distrito Federal, que garantiu que as forças policiais locais são suficientes para garantir a integridade de todos.
O gesto do presidente deixa dúvidas da sua real preocupação, visto que não houve nenhuma atitude parecida por parte dele quando a Esplanada dos Ministérios foi palco para atos pró-governo nos fins de semana anteriores. “O presidente se opõe ao outro lado e criminaliza quem é contra o governo. Há um posicionamento muito enviesado. Quando dizem que vão matar alguém do Congresso ou do Supremo, isso também é violência, mas nada foi dito. Nos parece bastante desigual o comportamento do Bolsonaro, e a gente começa a duvidar do republicanismo dele. São dois pesos e duas medidas”, diz a diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo.
“É normal que exista um risco de conflito maior quando há dois posicionamentos distintos na rua. Mas o problema é o que está por trás do que o Bolsonaro pensa. Ele não quer que as manifestações transcorram de forma pacífica, mas, sim, quer controlar um lado mais do que o outro”, acrescenta.
Para o especialista em Conflitos, Violência, Gênero e Etnia do curso de Serviço Social do Centro Universitário Iesb, Gilvan Gomes, o clima para um eventual embate foi criado pelo próprio Bolsonaro, que acabou por insuflar a sua base de apoio. “É preocupante, pois temos grupos que se dizem armados em uma esfera, e, de outra, os anti-fascistas. Fato é que os grupos estão cansados de notas de repúdio e estão tomando as ruas por conta própria. Parte da sociedade entendeu que isso não está surtindo efeito”, frisa.