Militares chantageiam o país contra impeachment de Bolsonaro
Foto: Dida Sampaio / Estadão
Impedir o impeachment de Jair Bolsonaro, mais do que dar um golpe, é o desejo dos militares. Os generais que o apoiam sabem que, por enquanto, o Congresso não levaria adiante nenhum dos 36 pedidos que dormem na gaveta de Rodrigo Maia (DEM-RJ). Mas também intuem que a situação pode mudar a qualquer momento, dependendo do que aparecer nas investigações sobre o bolsonarismo nas redes sociais ou os desdobramentos da apuração que envolve Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Ainda há quem se divida entre a entusiasmo com o juiz Sérgio Moro e a lealdade ao presidente.
A maioria dos apoiadores de Bolsonaro critica as ações do Supremo, dizendo que ao governo não é permitido governar. Veem na Corte um bunker de oposição ao projeto salvacionista da Nação. Moro é tratado por estes como o autor de mais uma facada no presidente. “Só resta ao senhor deitar a cabeça no travesseiro e chorar arrependido, talvez consolado pelo Lula”, escreveu o general reformado Domingos Miguel Antonio Gazzineo, em carta aos amigos. É preciso unir o nome de Moro ao de Lula, pois, como todos sabem, o bolsonarismo não existe sem manter o ex-presidente vivo.
O general precisa explicar do que Moro deve se arrepender? De ter processado Lula? Será que o bolsonarismo vai agora pregar que o ex-presidente era inocente só para atacar Moro? Ou que ele perseguia o PT em detrimento de outras forças políticas? Afinal, quem traiu o quê? Por que o desejo de Bolsonaro proteger seus filhos e amigos no Rio, nomeando um delegado da PF para sua superintendência, não é abordado pelo general no texto? Também não fala de seus camaradas que participam do governo em funções que não são militares. Nenhuma palavra sobre a carta do ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos.
Ramos teve de se explicar em um texto enviado aos colegas de turma da Academia das Agulhas Negras. “Sou soldado, discípulo de Caxias! Não sou e nunca fui político!” Não é o que dizem os deputados do Centrão que o encontram. De fala agradável, envolvente e sorridente, o ministro comanda a distribuição de cargos e verbas aos deputados dos partidos com quem o bolsonarismo afirmava até outro dia que jamais ia negociar nada. E quem o disse foi o próprio presidente, diante do Quartel do Comando do Exército (QCEx), em Brasília. A promessa feita diante do Monumento a Caxias virou fumaça.
O ministro afirma cumprir, como militar, uma missão. Seria uma confissão de que o governo é do Exército? Ele pede apoio do grupo para lutar contra “forças adversas”. Quem seriam essas forças? Na reunião do dia 22, o ministro ouviu em silêncio o presidente falar em armar seus adeptos. Não disse palavra contra a impropriedade do que era dito, urdido e engendrado. Ramos afirma que jamais trairá os valores sob os quais foi forjado “o nosso Exército”. Mas, afinal, um ministro deve prestar contas ao TCU, ao Congresso, à Controladoria da União, ao Ministério Público à sociedade ou ao Exército?
Ramos conclui: “A imprensa ideológica parcial é nociva e buscará a todo custo denegrir a imagem das Forças Armadas, como tem feito ao longo de nossa história. Não acreditem nas falácias diárias que tentam nos abater o moral. Não existe corrupção nesse governo!” Envolve-se a Força, seu nome, para a defesa da honra de quem aceitou cargo político e não militar. Negociar com o Congresso não é função de general da ativa. Ramos se metamorfoseou em político, mas quer permanecer verde-oliva. Lembra aos colegas ser general enquanto no Palácio forma a base do governo. Castello Branco chamava de anfíbio os colegas que tinham um pé na política e o outro nos quartéis. Pensava-se que essa confusão havia acabado há mais de 50 anos com as reformas do marechal.
A preocupação com a contaminação política das forças da ordem também parecia coisa do passado. Duas cenas reviveram-na no domingo, dia 31. A primeira foi no Rio, onde um policial militar afirmou ao deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) que tinha mandado queimar uma bandeira de um grupo contrário ao presidente. Em São Paulo, uma mulher que vestia uma camisa em que se lia “fascista é c… da mãe” foi à manifestação com um taco de beisebol. Um policial a viu discutir com pessoas contrárias a Bolsonaro e a retirou dali. Enquanto ela manejava o bastão e falava com agressividade, o PM a escoltava.
A cena parece banal. Mas não é. Enfrentar o desafio da contaminação política, que cancela a neutralidade e o apartidarismo da polícia, é uma das preocupações diárias do secretário-executivo da PM paulista, coronel Álvaro Batista Camilo. Apesar da fundada suspeita de que a pessoa com um taco de beisebol não estava com boas intenções, o PM não aprendeu o objeto ou identificou a mulher. Nenhuma das medidas de praxe foi tomada. Camilo disse que o normal seria a apreensão do porrete. A corporação vai verificar o que houve, quais as razões do policial para deixar a senhora com seu bastão à solta na Paulista.
Enquanto ela perambulava com um bastão na avenida, Bolsonaro descia de helicóptero militar para desfilar em um cavalo, como condottiero, diante de seu povo em Brasília. Que tipo de líder nos dias de hoje vai assim a uma manifestação, como se conduzisse a Nação a um destino irrenunciável? O objetivo da cavalgada era produzir imagens para seus seguidores nas redes sociais, pois os símbolos criados pelo governo fazem parte de sua política.
Antes de ver o presidente montado na Esplanada em mais uma manifestação antidemocrática que ameçava o Supremo, Celso de Mello, o decano do STF, comparou a situação do Brasil à da República de Weimar, às vésperas do nazismo. O ministro escreveu aos amigos que os bolsonaristas “odeiam a democracia” e querem instaurar “uma desprezível e abjeta ditadura militar!” Semanas antes, ele classificara como “bolsonaristas fascistoides, além de covardes e ignorantes” dois homens presos por ameaçar de morte juízes e procuradores do DF. Afinal, o ministro pensa em Berlim 1933 ou na Roma de 1922?
Celso de Mello ficaria ainda mais em dúvida se consultasse o trabalho da pesquisadora Beatrice Sica, da University College London, sobre a importância de figuras equestres para um líder retratado como condottiero. O Arquivo Storico Luce guarda uma dessas imagens. Era 24 de maio de 1934, quando um fotógrafo fixou a cena de Mussolini em uniforme militar, saudando os participantes de uma cerimônia. “A chi Roma?”, perguntava il Duce. Seus seguidores respondiam: “A noi”. Il ventennio – os 20 anos do fascismo – deixou vasta iconografia. Há dezenas de fotos de squadristi com porretes. Eles deram origem à milícia dos camisas negras, com a qual Mussolini marchou sobre Roma em 28 de outubro de 1922 e se impôs diante do impasse entre as forças políticas.
Os generais que conhecem Bolsonaro dizem que ele é um democrata. Mas negam que o Brasil viveu uma ditadura. Muitos não a admitem nem durante a vigência do AI-5. Outros elogiam Carlos Alberto Brilhante Ustra. O que é ser democrata para quem pensa dessa forma? “Não é porque as Forças Armadas não querem entrar nessa furada de intervenção militar, que ela não possa ocorrer. Se aumentar ou ocorrer mais alguma intromissão desses ministros do STF, a cobra vai fumar”, disse à coluna um general com trânsito entre os colegas do Planalto. Há quem pague para ver, como o senador Major Olímpio (PSL-SP), pois tem certeza de que os militares não vão apoiar um golpe para proteger Eduardo, Carlos, Flávio e o Centrão. Nem para escolher entre Moro e o presidente.