Moro usa métodos da Lava Jato contra Bolsonaro
Foto: Mateus Bonomi/Folhapress
No papel de acusador e de virtual investigado no imbróglio envolvendo sua saída do governo Jair Bolsonaro, o ex-juiz Sergio Moro parece usar para comprovar a sua versão dos fatos algumas das armas que mais notabilizaram a Operação Lava Jato, que comandou ao longo de quase cinco anos.
A começar pela relação de provas que fez em seu depoimento concedido à Polícia Federal e a procuradores no início deste mês.
Seu relato sobre a fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril, as mensagens trocadas via celular e mesmo o histórico de declarações públicas de Bolsonaro, mencionado pelo ex-juiz no depoimento, remetem ao que na Lava Jato é chamado pelo jargão de “provas indiciárias”.
Ou seja: são elementos que, em sequência, apontam para a ocorrência de um crime, embora separados pouco sejam taxativos sobre a existência desse ilícito.
Tende a se encaixar nesse perfil o vídeo da reunião ministerial, alçado a principal peça no debate político sobre as reais intenções de Bolsonaro ao demover da direção da PF o braço-direito de Moro, Maurício Valeixo.
O conceito de provas indiciárias, usado especialmente em casos de lavagem de dinheiro, foi celebrizado no mais conhecido caso da Lava Jato, o do processo do tríplex de Guarujá (SP) que motivou a prisão do ex-presidente Lula por 580 dias.
A lógica, muito criticada pelas defesas, é parecida com a do famoso Powerpoint elaborado pelo procurador Deltan Dallagnol em 2016: vários fatores relacionados pela acusação que apontam para o investigado, ainda que nenhum deles seja uma prova cabal.
Agora, no inquérito em andamento contra Bolsonaro, a fundamentação dos argumentos do ministro-denunciante caminha por essa linha.
No vídeo da reunião, o raciocínio confuso e agressivo do presidente e a declaração solta sobre “a segurança do Rio”, e não sobre a chefia da superintendência da PF, levam a entender que houve, sim, interferência na polícia para proteger familiares e amigos, mas não representam a tal bala de prata a que se esperava.
Moro procurou reforçar sua versão listando em depoimento ainda, por exemplo, o modo de funcionamento do serviço de inteligência federal —principal reclamação de Bolsonaro em relação à PF, na época— e rememorando declarações públicas que o próprio presidente deu em 2019 defendendo troca no comando da corporação no Rio.
Outro indício nessa direção foi ressaltado pelo próprio Moro em um tuíte que publicou na semana passada. Na postagem, o ex-juiz publicou um vídeo com um trecho de declaração de seu ex-chefe a jornalistas, horas antes, em que o presidente se enrolou ao falar no receio de eventual medida de busca e apreensão contra seus filhos.
O perfil do ex-magistrado na rede social, aliás, emula outro recurso conhecido da Lava Jato: o uso de manifestações na mídia, aí incluindo também agora sua conta no Twitter criada em 2019, na disputa pela narrativa do inquérito.
A decisão, por exemplo, de dar entrevista no domingo (24) ao Fantástico, em que voltou a criticar o governo, aproveitou o desgaste político de Bolsonaro provocado pela divulgação do vídeo, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal.
Foi assim também quando ele, de modo ágil, rebateu Bolsonaro, no dia de sua demissão, em abril, enviando à reportagem Jornal Nacional cópias de mensagens trocadas com o ex-chefe.
“A opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial”, escreveu Moro em 2004, em um hoje conhecido artigo sobre a Operação Mãos Limpas, na Itália, uma espécie de inspiração da Lava Jato.
Uma outra ferramenta muito bem explorada na operação iniciada no Paraná, também ligada à disputa pela opinião pública, foi a publicidade quase total de peças das investigações, tema que também voltou a ser discutido no inquérito de Bolsonaro.
O acesso público a atos, documentos e arquivos da Lava Jato contribuiu para aumentar a visibilidade da operação na imprensa e a credibilidade das medidas das autoridades envolvidas.
No inquérito relacionado ao presidente, Moro agora curiosamente reciclou argumentos usados em seu mais polêmico ato à frente da Lava Jato, a divulgação de gravações de telefonemas da então presidente Dilma Rousseff com seu antecessor, Lula, em março de 2016.
Tanto agora, ao defender a liberação total do vídeo da reunião, quanto quatro anos atrás, no caso dos petistas, o ex-ministro da Justiça citou o artigo 5 da Constituição e a necessidade de a sociedade fazer o “escrutínio” público sobre atitudes da administração pública.
“A divulgação integral do seu conteúdo caracterizará verdadeira lição cívica, permitindo o escrutínio de seu teor não só neste inquérito policial mas, igualmente, por toda a sociedade civil”, escreveram os advogados do ex-juiz há duas semanas.
No inquérito de 2016, Moro afirmou em despacho: “A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”.
Sem toga e sem cargo público, seu papel hoje ao desvelar meandros da gestão Bolsonaro lembra muito também a caracterização que ele próprio fazia dos delatores, personagens decisivos para a elucidação dos crimes na Petrobras.
Em várias sentenças da Lava Jato paranaense, o ex-juiz escreveu que delitos complexos, cometidos em segredo, dependiam muitas vezes do relato de testemunhas integrantes do grupo alvo da investigação para virem à tona.
“Crimes não são cometidos no céu e, em muitos casos, as únicas pessoas que podem servir como testemunhas são igualmente criminosos.”