Neurocientista adverte para reabertura suicida do comércio

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Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

O médico e neurocientista Miguel Nicolelis, que coordena o comitê científico do Consórcio Nordeste, avalia que não é o momento de reabertura de atividades econômicas e relaxamento do isolamento social.

“A nossa sugestão era de que, enquanto você tiver leitos ocupados com taxa de 80% e ainda tiver curvas ascendentes, você tem que manter [o isolamento]”, disse à Folha.

Professor catedrático da Universidade Duke, na Carolina do Norte, no EUA, ele afirma que o fator mais prejudicial ao controle da pandemia no Brasil é a completa falta de coordenação nacional. “É uma inépcia completa. Se eu tivesse um mapa de risco da inépcia em vez do mapa de risco do coronavírus, o mapa seria totalmente vermelho”, diz.

Na entrevista, o pesquisador, que está morando temporariamente em São Paulo, falou da subnotificação dos casos, da importância de quarentenas rígidas e da cobertura da imprensa e fez um alerta sobre o período de inverno com a confluência de outras doenças.

“Haverá crescimento da demanda de leitos de UTI quando essa tempestade perfeita ocorrer. Já começou. Estamos nela, mas não explodiu da maneira que ela provavelmente pode explodir.

Alguns estados, a exemplo de Pernambuco, Ceará e Maranhão, no Nordeste, iniciaram uma flexibilização. É o momento correto?
O que nós fazemos aqui no comitê científico do Consórcio Nordeste é oferecer recomendações e sugestões baseadas em dados científicos e análises de contexto de cenários e riscos. Trabalhamos com os dados disponíveis com a nossa matriz de risco. Há cidades que realizaram lockdown como São Luís, Fortaleza e Recife. Os dados de Fortaleza e de São Luís mostram uma diminuição da procura de pacientes das UPAs, estabilização dos óbitos e queda dos casos confirmados. Você começa, em Fortaleza, a vislumbrar um horizonte. O momento, como nos posicionamos claramente, no boletim 8, é de manter e aumentar o isolamento social. Funcionou no mundo todo.

Os gestores têm informações outras. São eles que operam e são eles que decidem. O comitê se posicionou claramente. Estamos recomendando que o nível do isolamento social seja aumentado. Caiu abaixo de 50. Em alguns lugares do Nordeste, caiu abaixo de 45 em alguns dias.

Por essa lógica, o ‘lockdown’ teria que continuar o por mais um período até estabilizar?
Nós sugerimos no boletim 8 do comitê que o lockdown continuasse para que pudéssemos ter uma confirmação das tendências de queda. A gente interpretou de maneira genérica que era preciso mais uma ou duas semanas. Em alguns lugares, a ocupação dos leitos ainda é altíssima. A nossa sugestão era que, enquanto você tiver leitos ocupados com taxa de 80% e ainda tiver curvas ascendentes, tem que manter.

O problema é, por exemplo, como aconteceu em algumas localidades. Você faz [lockdown] por tempo muito curto, você abre e tem que fazer tudo de novo. E isso cria um problema de mensagem para a população. A população não muda a chavinha rapidamente. Os bons exemplos foram feitos. Fortaleza ficou três semanas e está colhendo o resultado que são provavelmente os melhores junto com São Luís que teve uma achatamento da curva de óbitos.

Mas estão flexibilizando agora.
É muito dinâmico e tudo é muito novo. Precisamos levar isso em consideração. Você não pode tentar flexibilizar no meio de uma curva ascendente com um grau de ocupação de leitos tão alto. Eu entendo a dinâmica. Sei que existe uma pressão econômica muito grande porque os estados, principalmente os do Nordeste, não estão recebendo nenhuma ajuda federal. Nenhum de nós do comitê está usando sapatos de um gestor que está vendo suas receitas caírem, vendo a população passar necessidades.

Há risco de uma segunda onda mais forte?
Uma segunda onda é um fenômeno conhecido desde que a humanidade tem documentação de pandemias. Desde o Império Romano até idade média na Europa, a peste do século 14 e até a pandemia de 18.

Pesquisadores renomados dos EUA levantaram o alerta de que o país deveria se preparar porque tem três meses para se prepararam para uma eventual segunda onda. E não vai ser a última também. Esse vírus parece ser bem resiliente. Ele está se espalhando numa proporção muito grande e tem toda a chance de permanecer conosco durante muito tempo.

Qual a explicação para a disparidade grande entre o número de óbitos contabilizados por estados da mesma região, a exemplo de Pernambuco e Bahia?
É muito difícil dizer porque são múltiplos parâmetros que podem confundir tudo isso. Você pode ter uma variabilidade enorme de coisas acontecendo. Como os dados no Brasil têm um grau de subnotificação muito grande, é muito difícil, neste momento, sem ter feito um estudo epidemiológico cuidadoso, ter uma resposta para essa pergunta. A curva da Bahia se beneficiou das medidas de interrupção de transporte coletivo intermunicipal, ônibus intermunicipais, que foi feito logo no começo pelo governo da Bahia, em março. Isso ajudou muito a diminuir a taxa de transmissão.

Na Bahia, 60% dos casos de síndrome respiratória grave não tiveram identificação do agente causador da doença.
Na realidade, não sei se vocês viram o estudo da Fiocruz, que é o melhor neste momento, dizendo que das síndromes respiratórias agudas graves no Brasil, 73% são Covid-19. Ou seja, só aí temos uma clara definição da subnotificação.

Estamos entrando em um período de inverno. Isso piora a situação?
Em março, quando tomei ciência do mapa epidemiológico e da sazonalidade epidemiológica do Brasil, disse que iríamos ter a chamada tempestade perfeita no inverno. Vai existir essa confluência dos casos de coronavírus mais os casos de gripe como influenza A, B, H1N1, os casos de dengue e os de chikungunya. Todas as endemias vão confluir no sistema hospitalar de saúde ao mesmo tempo com um acréscimo brutal do coronavírus. Haverá crescimento da demanda de leitos de UTI quando essa tempestade perfeita ocorrer. Já começou. Estamos nela, mas não explodiu da maneira que ela provavelmente pode explodir.

Como funciona o projeto Monitora Covid-19 e como garantir a segurança desses dados já que são alimentados pelos usuários?
O Monitora estava sendo terminado antes de o comitê científico existir. Quando o comitê foi criado, a secretaria de Ciência e Tecnologia da Bahia já tinha uma parceria com a UERJ e com a Fiocruz. Já tinham o aplicativo terminado. Nós apoiamos integralmente o projeto. Nos certificamos de toda a excelência do programa, segurança e tudo isso.

O Monitora está chegando a 200 mil downloads em todo o Brasil. Nós abrimos um monitora pro Brasil todo. Os dados são anonimizados. Quando o doente cruza um limiar e é um paciente de risco, recebe um telefonema da telemedicina do seu estado. Isso está funcionando na Bahia, Sergipe, Maranhão, Piauí e Paraíba. Aí, um médico ou uma enfermeira faz anamnese mais completa e indica se você tem que ficar em casa, ir a uma UPA ou a um hospital. Esses dados são fornecidos de maneira anonimizada para uma sala de situação acessada por todos os governos do Nordeste, por nós do comitê, onde a gente pode observar o surgimento de novos focos, tanto nas capitais como no interior.

Até que ponto a crise política brasileira interfere no combate ao coronavírus e o que é mais prejudicial hoje no Brasil ao enfrentamento da pandemia?
Posso começar pela segunda parte? O mais prejudicial é a completa falta de uma coordenação nacional. Falta de um plano estratégico, falta de um reconhecimento da gravidade da situação, falta de empatia humana com as vítimas e as pessoas que estão passando necessidade, à beira da falência, à beira da fome e da completa falta de condições de sobreviver. E faltam insumos, equipamentos, financiamentos, testes que não foram providenciados de forma adequada pelo governo federal porque, primeiro, não acreditou na gravidade, não se preparou e não entregou.

É uma inépcia completa. Se eu tivesse um mapa de risco da inépcia em vez do mapa de risco do coronavírus, o mapa seria totalmente vermelho. Quando a gente começou, a mensagem do comitê foi muito simples: isto é uma guerra.

O governo federal tem sido um entrave na questão da liberação dos médicos formados no exterior? E como avalia a posição do Conselho Federal de Medicina?
Estamos numa guerra, certo? E, numa guerra, você recruta os soldados disponíveis que podem ir para o campo de batalha. É uma guerra de sobrevivência do país. O Brasil nunca teve isso. Não temos uma cultura como os europeus têm, eles tem mil e tantos anos de experiência em guerra de sobrevivência. A mesma coisa dos EUA. Desde a sua criação, o país tem uma cultura de enfrentamento de guerra. Está no DNA da civilização americana.

No Brasil, isso nunca aconteceu. Quando você entra em uma guerra, é preciso pensamento estratégico. Tem que deixar de lado as merrecas e as picuinhas e pensar em como você vai salvar um maior número de pessoas.

O senhor sempre teve uma visão crítica do trabalho da imprensa. Qual a avaliação que o senhor faz da cobertura jornalística na pandemia?
Vamos corrigir a sua posição de cara. Eu nunca fui crítico da imprensa. Eu fui crítico de alguns veículos da imprensa, que se demonstraram claramente parciais e com agendas completamente distintas de uma agenda científica, vamos dizer assim. Acho que a cobertura tem sido muito boa. Tem sido muito melhor do que em outros lugares do mundo, inclusive. Tenho visto aqui um poder crítico, um tom crítico racional muito maior e também uma defesa da ciência.

Como será o mundo até a chegada de uma vacina?
O mundo está pagando o preço por um modelo de desenvolvimento e civilizatório que foi construído sob um pilar de múltiplas fragilidades. E a pandemia expôs essas fragilidades, expôs as fragilidades dos modelos econômicos, de como sistemas políticos lidam com os graus de desigualdades que o mundo ainda tem e que são gigantescos, como o nosso.

O mundo em que nós estamos vivendo nesse instante e o mundo que vai florescer quando tiver uma vacina que permita imunizar parte da humanidade você tem muita coisa para fazer. A primeira é colocar a vida humana como prioridade. Se nós queremos ter uma chance enquanto espécie, precisamos viver de maneira mais harmoniosa com o ambiente, de maneira mais harmoniosa com o ecossistema e, principalmente, temos que reconhecer que vida humana tem que ser prioridade.

Folha