Deputados bolsonaristas usam verba pública em negócios privados

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Foto: Dado Ruvic/Reuters

Deputados da base governista e da oposição transformaram a divulgação da atividade na Câmara num negócio privado. Eles recorreram a empresas contratadas com dinheiro da cota parlamentar e assessores pagos pela Casa para gerir canais monetizados no YouTube, com vídeos que arrecadam recursos de acordo com o número de visualizações. A prática vem sendo chamada de “toma lá, dá cá” nos corredores do Congresso.

O Estadão identificou ao menos sete parlamentares que estão ganhando dinheiro dessa forma. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) é uma delas. Em junho ela gastou R$ 4 mil da cota parlamentar com uma firma que trabalha na edição do conteúdo que posta. O alcance dos vídeos gerou a Carla R$ 23.702, dos quais diz ter recebido já R$ 15,1 mil do YouTube.

Além dela, os deputados Joice Hasselmann (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF), Otoni de Paula (PSC-RJ), Paulo Pimenta (PT-RS) e Flordelis (PSD-RJ) também contrataram empresas com dinheiro da cota parlamentar para fazer edição e montagem dos vídeos apresentados em seus canais no YouTube. Já Gleisi Hoffmann (PT-PR) recorreu a assessores pagos pela Câmara para manter seu canal. Destes, apenas Pimenta e Otoni de Paula disseram à reportagem ter desistido da monetização.

Os únicos deputados que informaram ao jornal quanto teriam recebido foram Otoni, Gleisi (R$ 32,3 mil) e Carla. Procurado pela reportagem, o YouTube não informou os valores repassados aos parlamentares, alegando sigilo de informação. Esse dinheiro que vai para o bolso dos deputados não é alvo de fiscalização e controle da Câmara. A instituição não inclui a prática, que é nova, na lista de irregularidades.

Alvo de investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre atos antidemocráticos, Bia Kicis pagou R$ 45,5 mil de sua cota às empresas BM Gestão de Mídias Sociais e L. A. Soluções em TI e Marketing Digital por serviços de produção, edição, montagem e publicação para o canal dela no YouTube, entre novembro de 2019 e junho deste ano. Nos últimos cinco meses, o canal saltou de 100 mil inscritos para 136 mil, o que amplia a visualização dos vídeos, fator determinante para recebimento de valores.

Um documento enviado pela Secretaria de Comunicação Social (Secom) à CPI mista das Fake News no Congresso registrou que o canal dela exibiu, no ano passado, anúncio da reforma previdenciária. A deputada não quis comentar o assunto.

Também na mira do STF, Otoni de Paula pagou R$ 191,6 mil às empresas Agência Vírgula e Aplicanet por serviços que se relacionam ao canal dele, entre março do ano passado e maio deste ano. O canal tem 81,2 mil inscritos. Ao Estadão, o deputado disse que não sabia da monetização e informou que suspenderia a prática e, caso tenha recebido alguma quantia, repassará de volta à Câmara. “Foi um erro de gestão e assessoria, que já foi corrigido com o YouTube”, disse a assessoria do parlamentar.

O canal mais talhado para o negócio do YouTube é o Joice Hasselmann TV. Com 937 mil inscritos e uma soma de 200 milhões visualizações de vídeos, o canal oferece até assinatura, ao preço de R$ 7,99 mensais. Quem assina se torna membro do canal e tem direito a “selos de fidelidade ao lado do seu nome em comentários e no chat ao vivo” e a “um bate-papo semanal exclusivo, olho no olho” com a parlamentar. Joice pagou R$ 27,5 mil à Agência EG, entre agosto de 2019 e maio de 2020, para serviços que incluem o YouTube, segundo as notas fiscais reembolsadas pela Câmara.

A deputada se recusou a falar sobre o assunto e a revelar quanto ganhou com a monetização. “Todos os gastos realizados pela deputada Joice Hasselmann em seu gabinete são diretamente relacionados com sua atividade parlamentar, inexistindo qualquer desvio de finalidade nos gastos realizados”, afirmou sua assessoria.

Carla Zambelli, que viu seu canal crescer de 213 mil inscritos para 362 mil nos últimos 90 dias, disse que não vê ilegalidade em ganhar dinheiro com um conteúdo produzido com verba pública. Ela justifica que a Câmara está se negando a reembolsar alguns gastos com cota parlamentar, o que a deixou com uma dívida de R$ 78 mil e, diante disso, avalia que não há problema se ela ficar com o dinheiro vindo do canal para “cobrir um rombo”. “Em nenhum momento estou dizendo que quero ter lucro com o YouTube. Estou dizendo que, eventualmente, se o dinheiro fosse utilizado para cobrir um rombo do mandato, eu acho que não é imoral”, afirmou.

A deputada afirmou que usou R$ 3,5 mil, que é parte do primeiro valor de monetização de seu canal, na compra de “pasta e escova de dente” para “pessoas carentes” de Brasília e São Paulo e que pretende doar o restante. “Eu tenho o canal desde 2011. Eu deixei acumular e, quando o dólar estava em R$ 5, eu tirei. O único dinheiro que eu recebi até hoje eu reverti em bem para a sociedade”, disse. “Acho que eu devo ter agora uns US$ 200 lá (de saldo). O que é que é isso? O que é o tamanho desse dinheiro, perto do rombo que eu tive trabalhando como deputada?”, disse. O salário dela como parlamentar é de R$ 33,7 mil.

Dono do Canal da Resistência, Paulo Pimenta gastou R$ 133,9 mil entre 2015 e 2019 em cota da Câmara na contratação da empresa Clou Assessoria, que, nas notas fiscais, informa serviços relacionados ao YouTube. O canal tem 309 mil seguidores. O deputado informou que parou de monetizar seu YouTube “há uns dois meses” e as receitas foram reinvestidas em sua comunicação, não resultando em lucro privado.

Já a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, fez ao menos um pagamento especificando serviço na plataforma de vídeos, no valor de R$ 2 mil, ao microempreendedor Gustavo Castro, no ano passado. Contudo, desde fevereiro, tem feito pagamentos mensais que somam R$ 29,4 mil a uma empresa que presta serviços para seu Facebook e seu Instagram.

Gleisi disse que seu canal já obteve R$ 32,3 mil em monetização, iniciando em agosto de 2019. Ela ressaltou que seu YouTube é gerenciado por sua assessoria e não por empresas. O dinheiro, segundo ela, é “reinvestido na comunicação, como na compra de equipamentos para produção dos vídeos”. “Não há nenhuma imoralidade ou improbidade”, afirmou.

Especialistas dizem que a prática da “monetização” fere princípios da administração pública. “Em tese, você tem um conflito de interesse muito grande. Se ficar caracterizado que há uma remuneração pessoal do parlamentar por conta de um serviço que foi contratado utilizando dinheiro público, há um desvio de finalidade”, afirmou o advogado Valdir Simão.

Ex-ministro do Planejamento e da Controladoria-Geral da União (CGU), ele disse que nenhuma dúvida pode pairar sobre a utilização de recursos públicos. “Se, de fato, os serviços pagos com verba indenizatória renderam aos deputados vantagens pessoais, é uma violação clara aos princípios da moralidade e da impessoalidade na administração pública.”

Para o ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCE-DF), o advogado Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, a verba parlamentar tem por finalidade a promoção do trabalho de parlamentares. Ele ressaltou, no entanto, que, havendo retorno financeiro, isso não poderia levar à apropriação de recursos pelos próprios parlamentares. “Poderia surgir alguma questão de improbidade aí.”

Marina Atoji, gerente de Projetos da ONG Transparência Brasil, ressaltou que o Código de Ética e Decoro da Casa pode ter sido ferido. “No mínimo, a prática da monetização atenta contra o decoro parlamentar e, no limite, é improbidade administrativa”, disse.

Estadão