Discurso de ódio destrói a vida de mulheres lésbicas
Foto: Reprodução/ADC
Como o discurso de ódio na internet afeta as mulheres lésbicas? E como a Justiça, o Estado e as redes sociais respondem a este tipo de violência? Publicado em junho, um estudo feito pela Asociación por los Derechos Civiles (ADC), da Argentina, com colaboração da organização brasileira Coding Rights e outras entidades da América Latina tenta responder a estas questões.
A pesquisa realizou entrevistas com 14 ativistas lésbicas da Argentina, Costa Rica, Panamá e Brasil, entre elas Mônica Benício, Camila Marins, da revista Brejeiras, e Michele Seixas, da Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL), entre os meses de novembro de 2019 e janeiro de 2020. O objetivo era o de conhecer suas experiências pessoais e coletivas com ataques e o discurso de ódio na internet.
Os pesquisadores argumentam que indagar aos mais vulneráveis a esse tipo de violência o que eles entendem como discurso de ódio é um recurso fundamental para compreender o funcionamento desta prática. Por isso, na análise em questão, se dedicam a entender como as mulheres lésbicas são afetadas por essas condutas.
Os pesquisadores Marianela Milanes e Eduardo Ferreyra, da ADC, que assinam o estudo, afirmam que o discurso de ódio é um dos pontos mais controversos da regulação da internet. Se por um lado pode se dizer que as tecnologias permitem uma viralização de mensagens de ódio que atingem em especial grupos mais vulneráveis, por outro lado se adverte que a regulação excessiva põe em risco a liberdade de expressão. Para os pesquisadores, parte do problema esta na falta de consenso sobre o que é de fato discurso de ódio. Este vazio, de acordo com a publicação, acaba sendo ocupado pelas plataformas, que “através de suas políticas de moderação são encarregadas de eliminar conteúdos que contenham esse tipo de violência.”
A partir das entrevistas, os pesquisadores puderam concluir que a prática do discurso de ódio pode ser interpretada de três formas: como instrumento de hierarquização machista, como mensagem de expressão discriminatório ou exercício de violência simbólica.
O estudo indica que, como o lesbianismo questiona e desestabiliza os fundamentos da cultura machista e os papeis de gênero que ela atribui as mulheres, a primeira manifestação do discurso de ódio contra as ativistas entrevistadas surge como prática de promoção desta hierarquização machista, independentemente de seus emissores terem consciência disso ou não.
“Para mim é muito importante me nomear como lésbica em todos os espaços em que participo desde que saí do armário. Eu sempre fui uma lésbica muito visível porque estou constantemente me posicionando politicamente, então a coisa do discurso de ódio aconteceu comigo pela mesma razão, porque nas minhas redes (sociais) eu sou como eu sou em qualquer espaço”, disse uma das ativistas.
O discurso também é apontado como expressão discriminatória contra mulheres lésbicas. “Manifestações preconceituosas, racistas e segregadoras apelam a questão moral e religiosa como forma de dizer que há um erro em comportamentos e corpos que não reproduzem o padrão. Mas, por outro lado, vejo que mesmo aqueles que são afetados pelos mesmos preconceitos de racismo e segregação também estabelecem diálogos de ódio e intolerância. Eu sinto que as redes (sociais) são grandes campos de guerra”, disse outra entrevistada.
“Existem discursos de ódio por orientação sexual, mas os piores ataques ainda são racistas. A lesbofobia é muito poderosa na internet, mas o racismo ainda é o principal motor do ódio”, afirmou outra ativista.
Em última análise, o estudo da ADC aponta que o discurso de ódio na internet também pode ser definido como violência simbólica, uma vez que se trata de uma tentativa do emissário de impor subordinação ao seu receptor. “Se a violência sexual contra mulheres lésbicas é praticada porque o violador crê que assim a tornará heterossexual, essa violação tem um agravante, porque há crime de ódio, e ele tem a ver com todo esse discurso que diz que a única coisa que as mulheres precisam é um pênis”, disse uma das ativistas que participaram da pesquisa.
A percepção entre as entrevistadas é a de que redes sociais são ferramenta inseparável e fundamental para o seu ativismo e embora os algoritmos priorizem e selecionem conteúdos criando “bolhas” de pessoas com as quais se identificam, isso pode ampliar a polarização com os que estão fora da “bolha”. Muitas recorrem às ferramentas de denúncia das próprias plataformas quando recebem mensagens de ódio, mas se frustram com os critérios utilizados pelas empresas para revisar os conteúdos reportados, escrevem os pesquisadores Milanes e Ferreyra.
Entre os depoimentos coletados para o estudo, um deles é destacado: o da arquiteta Mônica Benício, viúva da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, que lembra de uma experiência específica que vivenciou nas redes sociais.
Ela conta que, quando viralizou a moda de se compartilhar uma foto atual ao lado de uma foto de dez anos atrás, um meme foi feito com a foto de Marielle ao lado de um cadáver em decomposição. Para Mônica, a maioria das pessoas não reflete sobre a responsabilidade dos seus atos da internet. “Ela se refere, em particular, a quando alguém lhe enviou o meme sem parar para refletir antes sobre seu alcance e efeitos. Mônica narra que ter recebido esse conteúdo lhe fez muito mal e ela precisou tomar calmantes e do apoio de amigos para superar.” A ativista reforçou a necessidade de se repensar esse tipo de ação.
Além da análise do impacto social, o estudo também evidenciou como o discurso de ódio é tratado pelas convenções internacionais de direitos humanos assinadas pelos países em questão e como esse tipo de crime é tipificado e combatido pelo aparato judicial local.
A pesquisa mostra que as leis da América Latina trazem vários critérios e terminologias definir discurso de ódio. “Dessa forma, não há padrão uniforme que nos permita estabelecer com certeza quais comportamentos legalmente se enquadram na definição e quais não”, diz o estudo.
Ainda de acordo com os pesquisadores, “abordar o fenômeno do discurso de ódio requer problematizar o contexto de desigualdade no acesso à Justiça e o reconhecimento legal e institucional de indivíduos e grupos que historicamente foram violados.”