Governadores foram alvos de abusos da PF
Foto: Michell Mello/Secom
As decisões judiciais que autorizaram recentes operações de busca e apreensão nas residências dos governadores de Rio de Janeiro, Pará e Amazonas têm em comum justificativas legais frágeis e indicam um afrouxamento das exigências em relação às regras para autorizar esse tipo de medida.
Especialistas em direito penal que, a pedido da Folha, examinaram as decisões do STJ (Superior Tribunal de Justiça) avaliam que a fundamentação mais fraca é a que foi usada para permitir a entrada da Polícia Federal na casa do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC).
Na semana passada, ele foi alvo de operação em apuração sobre o desvio de recursos federais de combate à Covid-19 no estado. Segundo os investigadores, foi realizada a compra irregular de 28 respiradores de uma empresa importadora de vinho com um sobrepreço de 133,67% em relação ao preço de mercado.
O principal argumento para determinar a busca na residência foi o de que Lima fez postagens em redes sociais sobre as circunstâncias das compras dos equipamentos e, em entrevistas, rebateu publicações da imprensa sobre irregularidades, o que indicaria o seu conhecimento sobre as supostas fraudes.
Em relação à operação no Pará, uma das bases são interceptações telefônicas e de mensagens entre o governador Helder Barbalho (MDB) e o empresário André Felipe de Oliveira da Silva, que realizou venda de respiradores ao estado.
Para o ministro Francisco Falcão (STJ), que autorizou a busca, os grampos revelam uma proximidade entre eles e trazem conversas dos dois sobre a compra dos equipamentos, o que demonstraria um conluio para fraudar o estado.
Na decisão judicial, Falcão reproduziu falas selcionadas pelo Ministério Público nas quais o empresário e o governador tratam do envio de documentos sobre a aquisição. Em uma delas, Barbalho cobra: “Cadê a proposta”.
Em outra mensagem destacada, o governador reclama sobre o atraso na entrega dos respiradores. “Vc está ganhando uma fortuna”, disse Barbalho a Silva.
Na investigação, há a suspeita de que o governo estadual tenha comprado respiradores com superfaturamento de 86,6%. Além disso, metade do pagamento foi feito de forma antecipada, houve atraso na entrega, os produtos eram de modelo diferente do previsto e não eram adequados ao tratamento do coronavírus, de acordo com a acusação.
No caso do Rio de Janeiro, a fundamentação do ministro Benedito Gonçalves (STJ) é genérica, mas, a exemplo da operação no Pará, o uso de redes sociais para divulgar medidas na área da saúde foi apontado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) como evidência de que o governador Wilson Witzel (PSC) tinha conhecimento sobre as fraudes investigadas.
São apontados supostos superfaturamentos, desvios e favorecimentos ilegais em contratos ligados ao combate à Covid-19. Os investigadores indicaram como suspeitos os fatos de a mulher de Witzel ter contrato de prestação de serviços advocatícios com uma empresa que integraria o suposto esquema e de o governador ter assinado a revogação de uma punição aplicada a uma das empresas sob apuração.
Segundo a criminalista Ana Carolina Moreira Santos, conselheira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, as três decisões são exemplos de um problema nas investigações que vem se agravando no país desde o início das grandes operações da PF a partir de meados da década de 2000.
Para ela, o Judiciário vem permitindo a adoção de medidas mais drásticas, como a busca e apreensão em casas, sem que antes tenham sido usados métodos investigativos menos invasivos.
“As decisões deixam isso muito claro, pois partem de indícios produzidos pelos próprios investigados, ou seja, manifestações que são feitas em redes sociais.”
“Quando um governador vai noticiar a compra de aparelhos para seu estado, isso não quer dizer que ele participou do processo supostamente fraudulento de compra desses produtos. É necessário que sejam produzidos outros atos de investigação nesse sentido”, afirma Ana Carolina.
Para a advogada Paula Lima Hyppolito Oliveira, conselheira da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), a legislação prevê que as buscas e apreensões sejam usadas em caráter complementar, quando já há indícios concretos sobre a autoria dos crimes, mas têm sido empregadas para turbinar casos que ainda estão fracos em termos de provas.
“A lei exige, para a autorização da busca, a existência de fundadas razões, ou seja, um quadro pré-existente de indícios graves, sérios e fortes da prática de um crime e de sua autoria. A busca tem natureza subsidiária.”
Na investigação sobre as supostas irregularidades em contratos de saúde no Rio, a PGR invocou a teoria do domínio do fato, que é originária do direito alemão e ganhou fama no Brasil no julgamento do mensalão.
Nas sessões do caso, o STF (Supremo Tribunal Federal) interpretou essa teoria no sentido de que, em esquemas criminosos sofisticados, é possível incriminar líder do grupo ainda que ele não atue diretamente nos delitos, mas saiba sobre eles e tenha o poder de impedir que sejam realizados.
A menção a essa teoria agora, no Rio, está na petição em que a PGR indicou como principal evidência uma série de publicações na conta do Twitter do governador sobre hospitais de campanha, assim como reportagens em que ele manifesta a intenção de construir as unidades.
Segundo a subprocuradora-geral da República Lindôra Maria Araújo, “as imagens e matérias demonstram que Wilson Witzel assumiu o protagonismo, tomou a frente, comandava as contratações e toda a política pública alusiva ao combate à pandemia da Covid-19, em típica situação de domínio do fato”.
O criminalista e professor de direito penal da USP Pierpaolo Bottini alerta, porém, que depois do mensalão o STF passou a fazer uma interpretação mais restritiva da teoria do domínio do fato. De acordo com o atual entendimento da corte, é necessário que se prove que o investigado conhecia e coordenou o esquema criminoso.
Outro ponto levantado pelos especialistas em direito penal é o do prejuízo à imagem dos políticos alvos das operações policiais.
Para o advogado Davi Tangerino, professor de direito penal da FGV Direito SP, “a notícia da busca e apreensão é amplamente divulgada e, daqui a dois ou três anos, se ocorre o arquivamento ou não fica comprovada a vinculação do governador, o estrago já foi feito”.
“Há um pleito antigo dos criminalistas e professores para que se trate com mais seriedade o nível de certeza do envolvimento das pessoas antes de uma medida invasiva como essa”, diz.
A Folha procurou os ministros Francisco Falcão e Benedito Gonçalves, autores das decisões judiciais, por meio da assessoria do STJ. O órgão respondeu que “os autos sobre os quais a reportagem trata tramitam no STJ sob segredo de justiça”. “Por essa razão, não há nada a informar ou comentar.”
Segundo a assessoria do Ministério Público Federal, “todas as medidas cautelares solicitadas pela Procuradoria-Geral da República se baseiam em indícios e elementos de prova e são submetidas à apreciação do Judiciário”.
“Nos casos mencionados, a existência de vários indícios levou à convicção da necessidade de aprofundamento das investigações, o que foi chancelado pelos respectivos relatores dos casos no Superior Tribunal de Justiça”, completou o órgão.