Itamaraty mergulha na gastança em plena pandemia
Foto: Luis Echeverria/Reuters (19.fev.2020)
O valor pago em diárias a diplomatas que atuam no exterior e foram chamados para missões no Brasil cresceu 49,29% em 2019, primeiro ano da gestão do ministro Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores (MRE), em relação ao ano anterior.
São diplomatas que atuam de forma fixa no exterior, recebem o salário em euro ou dólar e em alguns casos também têm direito a auxílio-moradia em moeda estrangeira, mas mesmo assim são remunerados por diárias para ficar por determinado período no Brasil em serviços provisórios. É o que ocorre quando algum funcionário tem um conhecimento específico ou vai ajudar em algum evento no país. O governo federal defende que esses pagamentos foram feitos dentro da lei.
Em 2019, segundo dados obtidos pela CNN por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), foram pagos R$ 444,3 mil em diárias a 77 diplomatas, ante R$ 297,6 mil em 2018 para 100 funcionários. Os valores foram atualizados pela inflação no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em geral, o tempo dessas missões é de menos de um mês. A média em 2018, por exemplo, foi de 12 dias. Mas esse número aumentou em 2019, com média de 22 dias. A CNN teve acesso à lista completa de diplomatas que receberam diárias por missões no Brasil em 2018, 2019 e 2020 (até junho). Os dados mostram diárias pagas a ministros de primeira e segunda classe, conselheiros, primeiro, segundo, e terceiro secretários.
Parte dos diplomatas ficou bem acima dessa média e do tempo considerado mais comum para especialistas ouvidos pela CNN. Em 2019, cinco deles ficaram mais de quatro meses no país: Alberto Luiz Pinto Coelho Fonseca (123 dias), Mateus Fernandez Xavier (142 dias), Fernando Augusto Ferraz Muggiati (142), Mayara Nascimento Santos (146) e Gilsandra da Luz Clark, que ficou seis meses no Brasil no ano passado (181 dias). Só Clark recebeu, em todo o ano de 2019, R$ 40,9 mil em diárias (cerca de R$ 6,8 mil por mês), segundo os dados do Itamaraty fornecidos à CNN.
Enquanto recebem essas diárias, o salário, pago em euro ou dólar, continua sendo pago, bem como o auxílio para pagar a residência funcional no outro país. A remuneração pode superar os R$ 30 mil mensais. Já o auxílio-moradia, conforme a planilha obtida pela CNN, chega até a U$$ 10 mil no mês (R$ 53,8 mil). Somadas essas remunerações, é possível que um mesmo servidor tenha custo de mais de R$ 1 milhão por ano.
Não há nenhum tipo de irregularidade nos pagamentos, mas especialistas ouvidos pela CNN contestam se há realmente necessidade da despesa. Para o cientista político e professor do Insper Leandro Consentino, o histórico do Itamaraty como um ministério poderoso e o insulamento burocrático favorece esse tipo de benefício desses servidores.
“É uma carreira extremamente privilegiada, com um salário alto. Tem-se ideia de que exige muito devotamento por conta da pessoa, que passa muito tempo viajando, dedicando muito tempo à causa do país em um estrangeiro. Já começa pela questão salarial muito acima dos padrões no Brasil, inclusive no serviço público. O Itamaraty sempre foi um órgão muito blindado e, por essa razão, criou privilégios corporativos como o Judiciário e as Forças Armadas.”
Para a doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de Relações Internacionais da PUC-SP Elaini Silva, a previsão legal da chamada a serviço de servidores lotados no exterior não é um cheque em branco e deve ser interpretada à luz dos princípios que regem a administração pública, como o da eficiência e da proporcionalidade.
“Se o diplomata está lotado no exterior, mas acaba a maior parte do tempo prestando serviços no Brasil, é uma decisão que vai contra esses princípios. Se há necessidade dos serviços aqui no país por muito tempo, deveria estar lotado aqui e receber em real, como outros diplomatas que fazem parte da estrutura no país “, diz. Ela ressalta que o mais comum é que essas missões tenham duração de até 30 dias.
“Acima disso, deveríamos analisar a razão pela qual pessoas que deveriam estar trabalhando na representação de nosso país no exterior permanecem aqui. No momento político e institucional em que nos encontramos, é bem razoável questionar se não se trata de uma tentativa de criação de base de apoio interna favorável.”
Para o professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Pedro Brites, há uma tendência na atual administração de reformular a estratégia do Brasil no exterior e parte dela requer trazer alguns desses diplomatas para atuar no Brasil. “Apesar de estar no exterior, o diplomata fica no Brasil brevemente para auxiliar, por exemplo, no aconselhamento em relação ao que fazer com o país A ou B. Mas em geral é por um período mais curto”, diz.
Em nota, o Itamaraty disse que compensou o aumento nas diárias dos diplomatas no Brasil com uma economia no total de diárias pagas a todos os servidores do órgão, que inclui missões no exterior. “O total de diárias pagas pelo Itamaraty ao conjunto de seus servidores, em 2019, foi cerca de 14% menor em comparação a 2018.”
Afirmou ainda que essas chamadas foram necessárias na reestruturação de gestão estratégica do ministério e que, em 2019, os diplomatas foram chamados para prestar apoio a grandes eventos, como a 11ª Cúpula dos BRICS e a Presidência Pro Tempore Brasileira do Mercosul.
O órgão afirmou que as chamadas exigem conhecimento específico na área de administração, para acompanhar visitas oficiais de autoridades dos países onde estão lotados e para realizar sabatinas no Senado Federal.
O MRE informou que, em casos específicos, “o quadro de pessoal lotado no Brasil não se mostra suficiente para atender adequadamente às necessidades pontuais” e reforçou que “as chamadas a serviço otimizam o emprego das capacidades específicas dos servidores do MRE, que são temporariamente deslocados da sede de sua lotação para atender a demandas circunstanciais”.
O órgão reforçou que o pagamento de diárias em chamada a serviço ao Brasil “obedece estritamente ao estipulado na lei e nas orientações dos órgãos de controle. O instituto da chamada a serviço de servidor lotado no exterior está regulado pela Lei nº 5.809/72 e pelo Decreto nº 71.733/73”.
A CNN tentou pedir o contato individual dos nomes citados na reportagem ao Itamaraty, mas o órgão afirmou que, “do ponto de vista da administração, não cabe a manifestação de servidores a esse respeito”.