Itamaraty usa conteúdo racista em curso de português
Foto: Helio Montferre/Esp. CB/D.A Press
O Ministério das Relações Exteriores (MRE) tem utilizado conteúdo de cunho preconceituoso e ideológico em cursos sobre a língua portuguesa, oferecidos em 44 países onde o Brasil mantém embaixadas. As lições, organizadas por uma empresa privada, estavam acessíveis no site da pasta até a noite desta terça-feira (14/07), mas foram retiradas ar após serem alvo de críticas no Twitter. Antes de o material ser omitido, porém, o Correio conseguiu fazer o download de uma das cartilhas.
Em um exercício sobre o verbo “ficar”, por exemplo, o aluno é solicitado a preencher um espaço para completar uma frase que trata de supostos benefícios do alisamento de cabelo. “Se ela alisasse o cabelo, ela [espaço para preenchimento] mais bonita”, diz um trecho da cartilha intitulada ‘Só Verbos II’, organizada pela empresa Schola, de São Paulo.
Os cursos são oferecidos através da Rede Brasil Cultural, um instrumento do MRE para a promoção da língua portuguesa e da cultura brasileira no exterior. Presente em 44 países, de cinco continentes, é formada por vinte e quatro centros culturais, quarenta universidades estrangeiras e cinco núcleos de estudo. O conjunto de países inclui Paraguai, Argentina, Peru, Bolívia, Nicarágua, Angola, África do Sul, Espanha, Itália e Finlândia.
Além incentivar o alisamento de cabelo, a cartilha do MRE também conduz o aluno a completar frases como “O exército iraquiano enfraqueceu depois do ataque americano”; “A Argentina empobreceu na última década”; “Se as mulheres não abortassem, não haveria tantas clínicas de aborto clandestinas”; “Se o MST se apropriar de nossas terras, nunca mais conseguiremos reavê-las”.
A cartilha também inclui ataques ao ex-presidente Lula. Em uma demonstração do uso da expressão “Se eu soubesse”, a publicação cita a frase “Se eu soubesse que o Lula seria tão corrupto e se envolveria com o Mensalão, eu não teria votado nele”. Mais abaixo, é explicado que o Mensalão foi o “maior esquema de corrupção descoberto no Brasil”.
O Correio conversou Airamaia Chapina, diretora da empresa Schola, de São Paulo, especializada em cursos de português para estrangeiros. Responsável pelo conteúdo da cartilha, ela disse que cedeu o material gratuitamente ao MRE em 2013, durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). A professora lamenta a repercussão negativa do material nas redes sociais.
“Fiquei muito triste com como meu nome está sendo associado ao governo Bolsonaro. Esse material foi cedido sem eu receber nada por isso por volta de 2013, quando Dilma era a presidenta do país. Foi um momento em que o Itamaraty solicitou a vários professores a cessão de seus materiais para ajudar no ensino da língua portuguesa e promover nossa cultura”, disse.
“Eu desenvolvi esse material para uso em minhas aulas particulares, porque existia carência de bons materiais e os que haviam (sic) eram muitos caros. Quando o Itamaraty me procurou, achei que estaria fazendo um bem e ajudando a promover nossa língua”, acrescentou a professora.
Ela lamentou que uma pequena parte da cartilha esteja sendo usada, na sua opinião, de forma política. Também negou que tenha sido preconceituosa ao falar dos supostos benefícios do alisamento de cabelo.
“Esse material foi desenvolvido no começo da década de 2000, você deve lembrar que escova progressiva e alisamento japonês eram febre, na época. Particularmente, até hoje eu faço escova, porque acho que fico mais bonita, minha cunhada tem cabelos cacheados e eu insisto para que ela os deixe natural, nao tem juizo de valor ou ideologia sendo propagada naqueles exemplos”, disse.
“Sobre o Lula ou o MST, eram assuntos que estavam todos os dias nos jornais, e coisas do cotidiano e notícias é o que levo para a sala de aula, para não ter uma aula chata, com exemplos apenas como: eu estou no trem, etc. Meia dúzia de exemplos, tirados de contexto, passam uma imagem muito diferente do material, que tem o único objetivo de fazer alunos treinarem verbos e vocabulário. Como jornalista, você sabe que um fato pode ser contado de diferentes formas”, continuou a docente, antes de concluir que não quer ter o nome associado nem a Dilma nem a Bolsonaro.
O Correio enviou à assessoria de comunicação do MRE um pedido de esclarecimentos sobre o conteúdo dos cursos de língua portuguesa. Assim que houver um retorno, esta matéria será atualizada com a manifestação do órgão.