Maia decide submeter PL das fake news a especialistas
Foto: Maryanna Oliveira/CB/D.A Press
A Câmara começou, na manhã desta quarta, os debates com especialistas sobre o Projeto de Lei número 2.630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, apelidado de Lei das Fake News. Na primeira sessão, os convidados ressaltaram a necessidade de um PL, mas fizeram várias críticas ao texto atual. Aprovado no senado em 30 de maio, o texto tem trechos como o do artigo 10, que permitiriam a detecção de milhares de perfis em caso de disparos em massa de mensagem de fake news, para se chegar ao autor. A medida é vista como uma forma de violação do direito ao sigilo à informação e à liberdade e expressão.
O trecho tem poucas chances de passar incólume pela Câmara. O presidente da casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ) abriu a sessão afirmando que parlamentares construirão um texto ainda melhor que o apresentado por senadores. “É um tema fundamental, que não está acontecendo apenas no Brasil, mas em vários países, a forma que as fake news vem distorcendo as informações e viralizando o ódio. É um debate no momento certo, que precisa ser ampliado, a partir do ponto aprovado no Senado”, destacou Maia.
“Tenho certeza que os parlamentares com a sociedade vão ampliar esse debate e chegar em um texto que garanta a liberdade de cada um dos cidadãos, mas que organizarão o tema de forma que os que usem de forma indevida possam também ter sua punição. Esse debate começa agora e vai ao longo dos próximos dias será importante para que a Câmara possa construir um texto ainda melhor que o constituído pelo Senado Federal”, afirmou o presidente da Câmara na abertura da sessão. A previsão é de 10 encontros de debates com diversos especialistas e representantes de empresas e da sociedade civil.
Especialistas também destacaram que o texto precisa de um objeto claro, e que as fake news sempre existiram, e que passaram a se tornar um problema pela dimensão que ganharam com as plataformas de redes sociais e com os ataques coordenados e financiados para manipular resultados de eleições e para enfraquecer adversários políticos. Os presentes destacaram que as redes são espaço integrante e indissociável para o debate público, e que o mais importante é criar meios regular esse espaço, garantindo, primeiramente, o direito à liberdade de expressão.
Outro tema abordado foi o do direito de resposta. E os especialistas alertaram que é um dispositivo complexo para se tratar no que tange ás redes sociais. Alertaram para que esse direito não seja pensado “olhando no retrovisor”, para o direito de resposta que é concedido por televisões, rádios, jornais impressos e sites de notícia.
A primeira a ser ouvida foi a professora adjunta de Direito Civil da Universidade de Brasília (UnB) e doutora em direito privado com tese em proteção de dados, Laura Schertel Mendes. A especialista destacou que, para a legislação ganhar corpo e efeito é preciso que a lei de proteção de dados, já aprovada na Câmara e no Senado, entre em vigor em agosto deste ano, como está previsto. “Não podemos discutir desinformação, sem discutir proteção de dados. A Fake News pode causar muito mais mal e danos quando é personalizada, com alvo específico. E com fluxo de dados descontrolado, os danos que a desinformação pode trazer são agravados”, explicou citando ações da Cambridge Analytics, que interferiram na eleição para presidente nos Estados Unidos e no Brexit.
A professora destacou que, como espaço de debate público, as redes sociais fragmentaram a população, e criaram bolhas, o que também serviu para tornar o ambiente mais polarizado. “A fragmentação permite maior manipulação, e tem outro efeito que é a polarização de ideias. Quanto mais a gente discute nos próprios grupos e bolhas, mais tendemos a nos radicalizar”, alertou. “Se nós quisermos aprimorar essa esfera pública e melhorar a qualidade, é importante uma regulação. Mas qual? A que vai se pautar em transparência. Para que as pessoas saibam que não estão conversando com um robô. Que a informação que está recebendo, que seja claro se foi financiada ou não”, disse.
“É fundamental esse debate a gente avaliar o objetivo. Queremos uma esfera pública punjante, ou rastrear as pessoas. Os objetivos têm que estar claros para saber se estão, ou não, em consonância com a constituição. O dispositivo de rastreamento de mensagens me parece contrário ao debate à esfera pública. Faz parte da nossa comunicação não só o conteúdo, mas os metadados envolvidos. O artigo 10, que propõe essa rastreabilidade, é ineficaz. Quem quer cometer crimes, vai burlar essa norma, e fará com que toda a população possa ser rastreada e inserida no aparato de vigilância. É a proteção de dados que nos ajudará a combater a desinformação. Para que as pessoas possam, de fato, trocar opiniões e construir sua posição política”, completou.
Mestre em Ciências Sociais e Internet na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e mestre em Direito e Tecnologia pela Universidade de Sorbonne, Caio Machado alerta que o problema não é a tecnologia em si, mas o mau uso, e que uma lei muito engessada poderia, inclusive, interferir no desenvolvimento tecnológico, levando em conta se trata de um setor com inovações frequentes. Ele também destacou que a necessidade de regular a esfera pública de debates já ocorreu outras vezes na história
“Não é a primeira vez que temos que regular a esfera pública. Os monges copistas tiveram que inventar índices, capítulos, números de páginas. Houve a prensa de gutemberg, e o que era dito e efêmeros, a partir de então, ficava na porta da igreja. As pessoas podiam levar comunicação impressa para casa. Como regular a esfera pública? É preciso diferenciava o espaço público do privado. Um é o modelo de democracia, e outro é a sala de estar, muito mais permissivo e que o estado não pode interferir”, refletiu.
Outro ponto que o especialista levantou foi a mentira na sociedade. “Qual é o escopo da lei? Do combate à fake news? Não é a falsidade. Isso é uma fração mínima. Todos os anos, as crianças são as mais enganadas do mundo. Ninguém vai falar para o pai que ele não pode dizer que a criança veio da cegonha. O discurso falso tem seu espaço na esfera pública. O foco é o dano que ele pode causar. A desinformação vem da confusão que causamos no receptor, com fins econômicos e políticos. O cerne é responsabilizar pessoas pelo dano”, ponderou Caio Machado.
O especialista destacou que a internet serve, basicamente, para a comunicação. E sob esse conceito, ela abrange inclusive jogos e sistemas de compartilhamento de arquivos.
A internet é um ecossistema amplo e deve ser considerado em sua amplidão. Há um dinamismo das plataformas e de escoamento de mensagens entre umas e outras. Elas se relacionam. Não são estáticas. “Tinha desinformação no orkut e tem o TikTok. Não adianta criar a regra do Whatsapp. O ecossistema é adaptável”, observou. “Diferença entre espaço público e privado? Todas as plataformas têm funções privadas e públicas. Existem modalidades de funções, parametragens. Quem pode acessar, quem pode ver, que define o gradiente de público e privado. Qual o alcance a gente quer definir? Ser racista, discurso e de ódio é em todo lugar. Mas o estado não pode colocar microfones nas casas pra saber quem faz discurso de ódio. Mas pode prender quem o faça em praça pública”, refletiu.
Machado destacou a importância da transparência. “Estampos com o dedinho na piscina. Não mergulhamos ainda. Se você botar no google imagens mulher bonita, só vai mostrar mulher branca. Isso é muito sério. Se procurar por dinossauros, dependendo da busca, você recebe informações evolucionistas ou criacionistas. A Câmara já construiu muito, mas tem ponto que temos que resolver. Precisamos proteger a esfera pública. Não vamos pensar que a internet é mecanismo de democracia direta. Para peticionar a aprovação não discutida de qualquer pauta política. Nossa principal arma é preservar a institucionalidade.Gravemente abalada nos últimos anos, também com a internet”, destacou.
Coordenadora geral do Fórum Nacional para Democratização da Informação e integrante da Coalizão Direito na Rede, Renata Mielle destaca que a regulação das redes é importante, mas não da forma como o projeto está posto. É preciso encontrar um caminho para regular o “fenômeno da desinformação em larga escala, que interfere de forma maliciosa nos processos políticos no mundo”, destacou. “É uma dimensão internacional, pois as plataformas são internacionais e com características de monopólio muito grande.”
“O fenômeno da desinformação tem muitas dimensões. Você não consegue, em um PL, dar conta da multiplicidade de fatores para esse fenômeno circular como circula hoje. A desinformação sempre fez parte no debate público da sociedade. O Jornal Nacional noticiou que o comício das Diretas Já era aniversário da cidade de São Paulo. Temos que entender o que há de novo nesse fenômeno e endereçar medidas para coibir essa disseminação em massa. E o que há de novo é o comportamento e uso de poder econômico para disseminar de forma artificial conteúdos para trazer danos a processos políticos pela internet”, afirmou Mielle.
Ela destacou a importância da transparência sobre o uso de contas automatizadas para viralizar conteúdos e trazer danos e defendeu a proibição do uso de aplicativos externos de disparos em massa.“Para isso, é indispensável ter mecanismo de transparência para essas plataformas. As plataformas tem que atuar de forma transparente para a sociedade fazer o escrutínio público. É preciso chegar a quem dispara essas mensagens. Rotulação e exclusão de contas automatizadas não classificadas. Não podemos ser contra a tecnologia. O uso de robôs não é ilegítimo. Pode cumprir papel cívico, público”, explicou.
“Precisamos de maior controle social na atividade das plataformas de moderação do debate público. Dar mais poder para as plataformas regularem conteúdos não adianta. É preciso que elas prestem contas de sua atuação nessa circulação do discurso público. É precisos garantir a segurança dos usuários. Rastreamento de cadeia de mensagem, tentativa de rastrear ids em massa de usuário para chegar aos que têm comportamento ilegítimo, não será eficaz e gerará impactos para liberdade de expressão. O uso ilegítimo e malicioso que traz danos à democracia não é o majoritário”, pontuou.