Pandemia pode deixar pilotos de avião desempregados
Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Entre os profissionais mais admirados e disputados até a pandemia, os pilotos de avião perderam o chão de uma hora para a outra. No Brasil, os seis mil profissionais das três principais companhias aéreas — Latam, Gol e Azul — vivem angústia inédita: têm seus empregos ameaçados pela forte queda no fluxo de passageiros nos aeroportos de todo o mundo.
No mês passado, cerca de dois mil pilotos destas companhias eram considerados excedentes no horizonte pós-pandemia das operações das aéreas brasileiras, que colecionam prejuízos bilionários com a crise do coronavírus e só esperam começar uma recuperação em 2022.
Em abril, um primeiro acordo permitiu redução de salário nas três companhias aéreas — cuja média no país é de R$ 22 mil para comandantes e R$ 12 mil para copilotos — e jornada de até 50% e licença não remunerada até junho. A Azul, por exemplo, colocou mais da metade de pilotos e comissários sob esse regime.
Em junho, perto de 1.300 foram salvos do desembarque compulsório depois que Gol e Azul fecharam novos acordos intermediados pelo Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) para evitar a demissão até o fim de 2021. Enquanto isso, são incentivadas aposentadorias e desligamento voluntário.
No caso da Latam, que pediu recuperação judicial nos EUA e tem 700 pilotos excedentes, o novo acordo travou.
— Quem perder o emprego agora, não tem para onde ir — diz um piloto há 15 anos na Latam, que pede para não se identificar, referindo-se às dificuldades do setor no mundo.
Crises na aviação doméstica, como a quebra da Varig ou a da Avianca, reservaram aos pilotos dessas companhias uma saída no mercado internacional, sempre ávido por um tipo de profissional cujo treinamento e experiência têm um valor ímpar. Com a escala mundial do coronavírus, a maior parte das aéreas no mundo também ameaça demitir, tendo aquelas que já estão dispensando funcionários.
O fluxo aéreo global até agora só é um quarto do que foi no mesmo período de 2019.
— Uma demissão, neste momento, pode representar o fim da carreira para muitos desses profissionais. Eles podem ser ejetados. Quem sair terá de ficar em espera, porque não há oportunidade de reinserção. As estrangeiras estão vivendo a mesma situação — diz Ondino Dutra, presidente do SNA.
Um comandante da Gol que também tem 15 anos de aviação diz que nunca experimentou uma situação como a atual. Ele passou 30 dias em licença não-remunerada e viu uma guinada no cenário da profissão:
— Já vivi diversas crises na aviação no Brasil. Mas a Covid-19 é diferente. Os pilotos sempre tiveram outros mercados no mundo para se reposicionar. Isso não existe mais. Há diversos brasileiros que estavam em estrangeiras voltando — diz o piloto, que também pede para não se identificar. — Um acordo de 18 meses, mesmo com redução de vencimentos, é um grande alívio.
Além da licença de piloto comercial, os profissionais precisam de habilitação específica para a aeronave que operam. Para continuar voando, é preciso comprovar à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) a chamada “experiência recente”: três decolagens e três pousos a cada 90 dias.
Durante a pandemia, essa exigência pode ser cumprida em simuladores ou em até um voo acompanhado por instrutor. Com a redução de rotas, as três empresas têm se empenhado na manutenção dessa rotina.
Os profissionais da Latam resistem ao acordo porque a companhia incluiu na negociação uma mudança na remuneração variável deles a partir de 2022. O salário dos pilotos é composto por uma parcela fixa e outra variável, calculada com base nas horas voadas. No caso da Latam, que não revisou sua prática, ainda é por quilômetro voado.
Segundo o piloto da Latam ouvido pelo GLOBO, essa mudança agora reduziria pela metade a remuneração deles de forma permanente em 2022:
— A empresa avalia que os pilotos vão aprovar, mas há muita incerteza. Não sabemos nem se a companhia se mantém após 2022.
Dutra, do SNA, diz que reduzir a remuneração dos pilotos de forma permanente é inconstitucional. Com o impasse, já foram realizadas quatro reuniões com o Tribunal Superior do Trabalho (STS). É preciso chegar a uma conciliação para fechar a proposta que será, então, votada em assembleia.
Geraldo Costa de Meneses, o comandante Harley, diretor de Operações e Treinamento de Voo da Latam, argumenta que o acordo proposto pela companhia a seus pilotos é similar ao que foi fechado pelas concorrentes, mas aponta diferenças no perfil da empresa:
— Perto de 40% de nossas operações antes da pandemia eram de voos internacionais, para 25 destinos. Isso significa o dobro de pilotos por avião, na comparação com o necessário para voos domésticos. E prevemos que a recuperação do doméstico será menos lenta. Nos três meses do primeiro acordo, tivemos 1.300 pilotos em licença não remunerada.
Harley explica que o número excedente de tripulantes foi calculado com base no que estimam para a Latam em 18 meses, que seria uma redução da operação em um terço:
— Nas nossas propostas, o impasse recai sobre a remuneração variável. No início de 2022, precisamos ser competitivos. O agravamento da crise requer a discussão. O modelo atual não é mais viável.
Humberto Bettini, professor de Engenharia de Produção da USP e especialista em aviação, concorda que as aéreas mais expostas a operações internacionais como a Latam são as mais penalizadas agora:
— Os países se fecharam. E a previsão é que a retomada comece pelo doméstico. A aviação vai encolher e todas as empresas serão impactadas. Mas Gol e Azul contam com malhas de voos e frotas mais adequadas por ora.