Por Bolsonaro, Exército relaxa fiscalização sobre armas
Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Após o presidente Jair Bolsonaro ter determinado a revogação de portarias com regras para rastreamento de armas de fogo e munições, o Exército prepara novas versões do texto sob críticas tanto de especialistas em segurança pública quanto de representantes dos CACs (caçadores, atiradores esportivos e colecionadores). Para os especialistas, as minutas das novas portarias, apresentadas em consulta pública no início de julho, têm retrocessos em relação às normas originais e pioram o controle sobre marcação, importação e exportação de armas, o que dificulta a resolução de crimes. Já os CACs reclamam de obrigações a usuários de armas que foram mantidas e também do prazo relâmpago da consulta do Exército, que durou apenas seis dias.
Duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF), que têm como relator o ministro Alexandre de Moraes, alegam que Bolsonaro defendeu interesses privados ao revogar as portarias 46, 60 e 61 do Colog (Comando Logístico do Exército), no dia 17 de abril, e pedem que as normas voltem a valer. Naquela data, em mensagem nas suas redes sociais, Bolsonaro se dirigiu a “atiradores e colecionadores” e afirmou ter determinado a revogação dos textos “por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos”. Os textos ampliavam as regras de controle para armas e munições sob responsabilidade de fabricantes, órgãos de segurança e pessoas registradas como CACs junto ao Exército, além de determinarem a criação do SisNaR, um sistema unificado para o rastreamento desses produtos em todo o país.
Um dos pontos suprimidos na nova minuta foi a necessidade de marcação, com um código para rastreabilidade, de estojos usados com recarga de munição. O dispositivo presente na portaria original havia sido atacado por CACs, que alegaram que esta exigência “inviabilizaria” a prática de tiro esportivo, já que atiradores costumam reutilizar estojos depois de competições para baratear custos. A nova minuta também afrouxou as regras de marcação de armas e de manutenção dos registros de venda por fabricantes. Outro item que sumiu no texto foi a identificação do nome do importador em armas vindas do exterior. À época em que as portarias foram revogadas, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) classificou como “inadmissível que o Colog faça portarias restringindo importação”.
— Quando se comparam os textos, percebe-se que a maior parte das mudanças foi para retirar novas responsabilidades que melhoravam marcação e rastreio de armas. A qualidade das informações também se perdeu. Coincidentemente, os beneficiários em vários pontos são a indústria bélica ou entes privados como os CACs, no caso da marcação na recarga — afirmou Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.
Para o presidente da Confederação Brasileira de Tiro Prático (CBTP), Demetrius Oliveira, contrário ao código de rastreabilidade em estojos, a marcação deveria ser feita apenas nas caixas das munições e de acordo com o IUP, uma chave de identificação que segue um padrão nacional — o que também foi retirado na nova minuta do Exército. Ao contrário da portaria original, o texto apresentado para consulta pública não especifica o código de marcação, tampouco cita a identificação do comprador em um sistema informatizado.
Embora não tenha visto “nenhum prejuízo à sociedade ou à segurança pública” com a revogação das portarias, o presidente da CBTP criticou o formato da consulta pública.
— Os CACs já são fiscalizados. Por que inserir os dados em outro sistema? O que precisa é colocar na mesa todos esses assuntos com responsabilidade e transparência. A consulta pública não permitiu todas as contribuições. Não adianta depois soltar outra portaria que ou deixará todo mundo boquiaberto, ou deixará a sociedade achando que perdeu-se o controle — afirmou Oliveira.
Segundo a pesquisadora do Instituto Igarapé, Michele dos Ramos, o Exército não apresentou justificativas técnicas para a embasar a revogação das portarias e a redação das novas minutas. Na avaliação da especialista, o governo priorizou objeções apresentadas por grupos específicos, como os atiradores esportivos, e abriu brechas para desvios de armas e munições.
— Estamos falando de marcação de munições usada por forças de segurança pública. Quando se fala em um sistema para armas e munições, é preciso lembrar que desde o Estatuto do Desarmamento de 2003 há uma previsão de integração dos registros mantidos por Polícia Federal e Exército. Isso até hoje não aconteceu, o que prejudica investigações. Não dá para pautar uma discussão como essa por privilégios para determinadas classes, que vão na contramão do fortalecimento da fiscalização — afirmou a pesquisadora.
Responsável pelas normas originais, o general Eugênio Pacelli teve sua exoneração da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) publicada em Diário Oficial uma semana após a publicação da primeira portaria que desagradou Bolsonaro. Em carta de despedida, Pacelli desculpou-se por não atender “interesses pontuais”. Procurado pelo GLOBO, Pacelli não retornou o contato. O Exército argumenta que a ida de Pacelli para a reserva estava prevista desde a reunião do Alto Comando em março.
Sobre a consulta pública, a DFPC informou que houve cerca de 8 mil visualizações e que 1,6 mil pessoas apresentaram contribuições, e que ainda não há data para publicação das novas portarias. A bancada do PSOL na Câmara dos Deputados ingressou com requerimento, nesta quarta-feira, pedindo que o Exército divulgue o conteúdo das contribuições às minutas, citando a “insegurança jurídica” trazida pela revogação das portarias originais. O partido é o autor de uma das ações no Supremo que pedem a retomada dos textos originais.
Na outra ação, ajuizada pelo PDT, o Comando Logístico do Exército se manifestou através de ofício no fim de maio, após um pedido do relator. No ofício, o Colog argumenta que a revogação das portarias se deu por “autotutela”, mas reconheceu ter levado em consideração questionamentos feitos “tanto por empresas quanto por CACs”, e afirmou ainda que uma reformulação dos textos originais é necessária para, entre outros motivos, esclarecer a necessidade de marcações “com vistas a não inviabilizar economicamente as atividades dos setores regulados” pelo Exército.
Após a revogação das portarias sobre rastreamento e controle de armas e munições, o governo federal voltou a seguir uma regulamentação baixada pelo Exército em 2006, e que é considerada defasada por especialistas em segurança pública. Foi com base nesta norma que o Ministério da Justiça publicou, nos dias 13 e 22 de julho, duas portarias sobre armamentos usados por agentes da Força Nacional. O texto publicado nesta semana afrouxou o controle sobre os equipamentos, retirando a obrigação, por exemplo, de um código criptográfico vinculado ao número de cada arma e que poderia ser recuperado mesmo em caso de danificação das marcações. O PSOL ingressou com projeto de decreto legislativo pedindo que a última portaria do Ministério da Justiça seja anulada.