Presidente negacionista pode ter morrido de covid19

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Evrard Ngendakumana/Xinhua

No pequeno Burundi, país com 11,5 milhões de habitantes no coração da África, a morte do presidente Pierre Nkurunziza, 55, marcou uma reviravolta nas políticas de combate ao novo coronavírus.

Negacionista contumaz da gravidade da doença e da pandemia, Nkurunziza foi sucedido por Evariste Ndayishimye, 52, que, ao assumir, adotou discurso firme contra o vírus.

Enquanto Nkurunziza, morto há um mês, minimizou os perigos da crise sanitária dizendo que “Deus limpou [o coronavírus] dos céus do Burundi” e chegou a expulsar o representante da Organização Mundial da Saúde do país, o sucessor classificou a Covid-19 como o “pior inimigo” da nação.

Na segunda (7), o novo governo lançou uma campanha de testes que, de acordo com a BBC local, realizou 640 exames em um dia.

Desde que a chegada de Ndayishimye ao poder, em 18 de junho, 1.900 testes foram feitos. Ainda que modesto, o número é maior do que o total dos três meses anteriores, quando 1.200 pessoas realizaram exames de detecção da Covid-19.

O novo presidente também implantou uma política de subsídio a sabonetes e água potável e afirmou que “todos têm que tomar medidas para não serem infectados ou para não infectarem os outros”. “Pedimos a todos com sintomas da doença que corram para fazer um teste e receber tratamento.”

Segundo o site Worldometer, o Burundi registra 191 casos do novo coronavírus e apenas uma morte. Na África, foram confirmados 528.310 casos e 12.309 óbitos, ainda de acordo com o site.

A morte do presidente, em meio à pandemia, foi cercada de controvérsia.

Nkurunziza era um atleta, graduado em educação física e apaixonado por futebol. Chegou a treinar um time da primeira divisão do país na década de 1990 e mais recentemente jogava e dirigia seu próprio time amador, o Hallelujah F.C.

Segundo o governo, o presidente morreu de um ataque cardíaco, no dia 8 de junho. O anúncio sem outros esclarecimentos, porém, levantou especulações de que a morte teria sido causada pelo novo coronavírus.

Pouco mais de uma semana antes, sua esposa, Denise Nkurunziza, havia voado para a capital do Quênia, Nairóbi, em busca de tratamento médico —mas o governo não informou o motivo.

Jornais quenianos publicaram que a então primeira-dama estava com Covid-19 e que havia sido transportada em uma câmara de isolamento dentro do avião. O governo, outra vez, negou as informações.

Ela ainda estava em tratamento quando recebeu a notícia da morte do marido. A mãe de Nkurunziza também está doente, mas o governo, de novo, nega-se a dizer qual é o diagnóstico.
Dois dias antes de morrer, o então presidente sentiu-se mal durante uma partida de vôlei. Jornais locais afirmam que ele apresentava sintomas de Covid-19 e que deu entrada em um hospital com falta de ar.

Sua condição de saúde melhorou no domingo (7), mas na segunda-feira (8) ele sofreu uma parada cardíaca e morreu. Em seu funeral, milhares de pessoas se reuniram em um estádio lotado, sem nenhuma preocupação com distanciamento social ou uso de máscaras.

A morte de Nkurunziza gerou um impasse sobre o processo de sucessão. A Constituição prevê que, em caso de morte do chefe de Estado, quem assume é o presidente da Assembleia Nacional, cargo então ocupado por Pascal Nyabenda.

O problema é que o novo presidente, Evariste Ndayishimye, eleito em maio, deveria assumir em agosto.

Nyabenda e Ndayishimye são do mesmo partido do presidente morto, o CNDD-FDD, e antes das eleições disputavam internamente a vaga de sucessor.

A disputa foi levada à Justiça, e a Corte Constitucional de Burundi antecipou a posse de Ndayishimye, que assumiu a Presidência do país.

Apesar da atual postura de combate ao novo coronavírus, Ndayishimye participava de grandes comícios comandados pelo então presidente durante as eleições. Nos atos, não havia nenhuma preocupação com o distanciamento social e outras medidas de controle da pandemia.

Em sua cerimônia de posse, em um estádio em Gitega, novas aglomerações e nada de máscaras.

Ndayishimye e Nkurunziza, ex-rebeldes do exército do grupo étnico hutu, lutaram na guerra civil iniciada em 1993 no Burundi. O conflito opôs hutus e tutsis após o assassinato do primeiro presidente democraticamente eleito no país.

Assim como Nkurunziza, Ndayishimye era um estudante quando escapou de um massacre na Universidade do Burundi. Fugiu do país, uniu-se aos rebeldes e, com poderosa retórica, tornou-se um porta-voz do comando rebelde.

Em 2005, a guerra civil chegou ao fim após 12 anos, com ao menos 300 mil mortos. Após conversas de paz em que Nkurunziza e Ndayshimye foram protagonistas do lado rebelde, o país realizou eleições multipartidárias novamente, e Nkurunziza foi nomeado presidente.

Em 2010, só ele disputou a eleição presidencial, marcada por ataques com granadas na capital, acusações de fraudee intimidação de eleitores por policiais e soldados.

Cinco anos mais tarde, Nkurunziza anunciou que disputaria o terceiro mandato, violando o acordo de paz de 2000 e a Constituição do país, que vetava mais de dois mandatos presidenciais seguidos, e elevando novamente as tensões no país.

Uma tentativa de golpe para derrubá-lo foi frustrada e, como consequência, cresceu o autoritarismo, com diversas acusações de violações de direitos humanos.

Em 2016, o Conselho de Direitos Humanos da ONU instituiu a Comissão de Inquérito para o Burundi, que segue atuante até hoje, sem apoio do governo.

No último relatório, de 2019, o órgão lamentou as “ameaças, intimidações e ataques pessoais feitos por representantes do governo do Burundi contra membros da Comissão de Inquérito”, durante as sessões do Conselho de Direitos Humanos e no Terceiro Comitê da Assembleia Geral.

Folha