Preto no Branco – uma crônica vital
Foto: Adams Carvalho/Reprodução
Nasci em São Paulo, filho de uma jornalista e um escritor, de classe média alta, branco. Na vila em que morei até os catorze anos, no Itaim Bibi, não havia um único morador negro. Aos dois anos fui para a pré-escola, onde não havia um aluno negro. Nem professor. No ensino fundamental, mudei para um colégio maior. Entre os mil alunos, não havia um negro. Nem professor. Tampouco havia aluno ou professor negro nas minhas classes do ensino médio.
Minha mãe não tinha um amigo negro. Meu pai não tinha um amigo negro. Nos almoços de domingo da família da minha mãe ou do meu pai, nas festas de natal ou réveillon, nem meu avô nem a minha avó nem qualquer dos meus dez tios e tias jamais apareceram com um amigo negro. Eu só fui ter um amigo negro, que segue até hoje sendo meu único amigo negro, aos dezesseis anos. (A mãe dele era uma artista plástica argentina, branca).
Em quase um quarto de século na labuta como escritor e roteirista, nunca trabalhei com um editor negro, um diretor negro, um roteirista negro. Nunca tive um chefe negro. Nunca recebi uma ordem de um negro. Nunca fui atendido por um médico negro, um dentista negro, um advogado negro, um psicanalista negro, nunca contratei os serviços de um arquiteto negro, um engenheiro negro, um designer negro. Nos restaurantes que eu frequento é extremamente raro encontrar pelas mesas um cliente negro.
No apartamento em que eu moro há cinco anos nunca entrou uma pessoa negra que não fosse funcionária. Não lembro de haver cruzado no elevador do prédio com qualquer negro que não estivesse a serviço. (Até bem poucos anos estas pessoas negras estavam proibidas de entrar no mesmo elevador que eu).
Na adolescência, na pista de dança de uma festa, havia um garoto negro com cabelo black-power. Era o único negro, ali. Sem pedir licença, apalpei suas madeixas. Ele ficou profundamente ofendido e irritado. Levei uma década para entender porque.
Pouco tempo atrás, quando minha filha tinha cinco anos, me perguntou por que a maioria das babás era negra. Se eu falasse a verdade, seria: “porque, filhota, durante mais de trezentos anos, nós, os brancos, trazíamos negros acorrentados da África e os vendíamos e comprávamos para usá-los como escravos. E depois que eles foram libertos, criamos uma série de entraves legais e paralegais para garantir que a esmagadora maioria deles nunca tivesse condições de se tornar médicos, engenheiros, professores, psicólogos, físicos. Por isso que o Darcy Ribeiro dizia que o Brasil era uma “máquina de moer gente”. E ainda tem quem diga que o Brasil é um país ineficiente. Agora dorme, filhota?”.
Claro que eu não disse disso. Eu saí pela tangente: “Não é verdade. Existem muitos negros e negras em outras profissões”. Na classe da minha filha não tem nenhum aluno negro. Na classe do meu filho não tem nenhum aluno negro. Na escola dos meus filhos tem um único professor negro, de capoeira. A babá que me ajuda a criar os meus filhos é negra.
Aí, quando um PM pisa no pescoço de uma mulher negra, quando um PM sufoca um motoboy negro, quando PMs encurralam centenas de meninos e meninas negros em becos de Paraisópolis, causando mortes por pisoteamento, quando, em duas semanas de maio de 2006, a PM paulista mata mais negros do que o número total de mortos durante 20 anos de ditadura, quando lemos as estatísticas informando que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, nós, brancos, como que despertando de um transe profundo de cinco séculos, levamos as mãos à cabeça: como isso foi possível?! Oh! Como?!