Racismo, impunidade e aceitação geram violência policial
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O jovem está de costas, com as mãos na nuca, virado para o muro. O policial que o revista arranca seu boné e grita: “Você para mim é ladrão, você é vagabundo. Olha essa desgraça desse cabelo aqui”, e aponta para o black power descolorido do rapaz.
“Você é o quê? Você é trabalhador é, veado?”, pergunta antes de dar três socos em sua cabeça e um chute na região do quadril. Depois sai andando e já não aparece mais no vídeo feito por trás de um portão do outro lado da rua e divulgado nas redes sociais.
O caso aconteceu à luz do dia, em fevereiro deste ano no bairro de Fazenda Coutos, periferia de Salvador, mas poderia ter sido em qualquer região do Brasil. Os abusos por parte de policiais que chocaram recentemente em São Paulo são rotina no país.
No último domingo (12), o Fantástico, da TV Globo, divulgou o vídeo de uma comerciante negra que teve o pescoço pisado por um policial em Parelheiros, zona sul da capital paulista. Ela havia batido nele com um rodo enquanto seu amigo que estava sendo detido e enforcado.
Na última terça (13), outra imagem chamou a atenção na cidade, dessa vez na avenida Rebouças, zona oeste. O motoboy negro Jefferson André da Silva, 23, foi abordado por estar com a moto estacionada sobre a calçada e com a placa encoberta por um adesivo.
Dois agentes tentam imobilizá-lo, mas ele resiste e leva um “mata-leão”, e diz “eu não consigo respirar”. A frase foi a mesma dita por George Floyd, também negro, morto em maio ao ter o pescoço pressionado por nove minutos pelo joelho de um policial em Minneapolis (EUA).
Ambos os casos são investigados pela Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo.
Um levantamento feito em jornais, sites e redes sociais contou ao menos 191 vítimas de excessos em atuações policiais no período de 12 meses (junho de 2019 a maio de 2020) em cinco estados (SP, BA, RJ, CE e PE). Em grande parte dos casos, houve agressões físicas. O dado é da Rede de Observatórios da Segurança, formada por pesquisadores da área nessas regiões.
Quatro desses estados tiveram aumento nas mortes por agentes do Estado em serviço neste ano. O único que não registrou alta foi o Rio de Janeiro, que tem a maior letalidade policial do país, possivelmente por causa de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que limitou operações policiais durante a pandemia do novo coronavírus.
Os abusos são frequentes nas falas dos moradores de favelas fluminenses quando as incursões acontecem.
Em 2018, por exemplo, a Defensoria Pública colheu 500 relatos anônimos e identificou 30 tipos de violações de direitos cometidos pelas Forças Armadas e pelas polícias durante a intervenção federal na segurança pública do estado.
Em um vídeo que circulou em setembro passado, um policial militar empurra e derruba uma mulher no Morro da Babilônia, na zona sul carioca.
“Eu encaro vagabundo de fuzil nessa porra. Então, você aprende a me respeitar”, grita ele apontando o dedo para a cara dela antes de ser retirado por um colega.
Em Fortaleza, uma filmagem divulgada pela TV Globo no último 10 acendeu o alerta mais uma vez. Um homem que, segundo a família, estava voltando para casa de um bar no bairro Pedras, na periferia da cidade, leva socos e tapas de três agentes durante uma abordagem policial.
Casos como esse não são restritos às grandes metrópoles. Em Miguel Calmon, cidade de 26 mil habitantes no interior baiano, imagens mostram um policial jogando um aparelho de som no chão e chutando o equipamento em uma casa onde moradores comemoravam o Dia das Mães, em maio.
Em Serra Talhada, no sertão de Pernambuco, imagens publicadas em abril flagram dois policiais chutando ao menos três vezes, inclusive na cabeça, uma mulher idosa sentada no meio da rua que parece estar embriagada. A justificativa é que ela estaria com um objeto pontiagudo nas mãos.
Para o pesquisador Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas-SP e membro do Fórum de Segurança Pública, os abusos se repetem estruturalmente nas polícias brasileiras por quatro principais motivos.
O primeiro deles é o apoio da sociedade: uma pesquisa Datafolha de 2016, por exemplo, aponta que a frase “bandido bom é bandido morto” era defendida por 57% dos brasileiros. “No Brasil, violência policial elege presidente, deputado, senador”, diz Alcadipani.
O segundo é a lógica policial —muitos acreditam que estão em uma guerra contra o crime, portanto vale tudo. Prender já não resolve.
Em terceiro lugar, faltam políticas públicas que desincentivem a letalidade policial. Por último, o controle externo do Ministério Público e das Corregedorias, que não são independentes, deixa muito a desejar, segundo o pesquisador da FGV-SP.
A falta de treinamento, para ele, é uma justificativa relativa. “Depende do lugar. É uma falácia dizer que a polícia de São Paulo não é bem treinada, assim como no Distrito Federal, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No resto do Brasil há mais deficiência no treinamento, mas qualquer policial sabe que não pode bater”, diz.
A pesquisadora Edna Jatobá, coordenadora do Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares) de Pernambuco, acredita que a solução passa por fortalecer as Corregedorias, dando maior transparência e celeridade na apuração dos abusos.
“Na maioria dos casos, os resultados demoram a vir ou simplesmente não aparecem. As pessoas se sentem desestimuladas a prestar queixa, além de terem medo de retaliações”, afirma ela, que também defende uma formação sólida sobre direitos humanos e racismo institucional para os policiais.
Ela destaca ainda a importância de uma retaguarda de apoio psicológico aos agentes. “São profissionais que estão nas ruas, se expondo a riscos e têm uma carga grande de estresse. Não que isso justifique o abuso, mas é uma questão que precisa ser encarada”, diz.
Todos os casos citados na reportagem estão sendo investigados pelas Corregedorias das polícias militares locais, segundos as secretarias de segurança.
O policial que empurrou uma mulher no Rio de Janeiro foi preso administrativamente, sendo transferido posteriormente para outra unidade, mas o inquérito segue em andamento.
Sobre a agressão de um homem em Fortaleza por um agente, a Polícia Militar do Ceará afirmou que o agredido “foi avistado em atitudes suspeitas” junto a outro homem que correu, “esboçou reação e precisou ser contido pelos policiais militares”. Depois, foi levado pela viatura para a casa dos pais. Foi aberto um procedimento disciplinar e também um Inquérito Policial Militar (IPM).
Os dois casos da Bahia tiveram as investigações temporariamente interrompidas em decorrência da pandemia do novo coronavírus.
Os dois policiais que participaram da ação em que destruíram um rádio foram afastados das ruas, assim como o policial que foi filmado batendo no jovem de black power.