Saúde distribui recursos para covid19 sob critérios políticos

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Foto: Reuters

São R$ 3 bilhões o total liberado pelo Ministério da Saúde para prefeituras e entidades indicadas por meio de deputados e senadores. Essa é a conta do senador Major Olimpio (PSL-SP). A Pasta chefiada pelo general Eduardo Pazuello não deu uma palavra até agora sobre o suposto favor a políticos, para formar uma base de apoio do governo no Congresso, usando o dinheiro da covid-19. Os recursos foram distribuídos na quarta-feira. Naquele dia 15, o ministério de Pazuello soltou R$ 4,9 bilhões para combater a pandemia – tinha até então usado apenas R$ 11 bilhões dos R$ 40 bilhões à disposição para a emergência sanitária.

Quem aceitou participar da operação precisou preencher uma planilha na qual havia 11 campos em branco. No primeiro devia colocar o nome do parlamentar e no segundo, o do partido. Depois, a Unidade da Federação, o órgão que receberia o dinheiro e ação contemplada. Em seguida vinham os campos para o título, o favorecido, o CNPJ, o GND, o valor e os do Siconv, o portal do Sistema de Convênios que processa informações sobre transferências de recursos federais para órgão públicos e privados sem fins lucrativos.

O major contou que lhe ofereceram R$ 30 milhões. Um dinheiro que pela Lei 13.979 pode ser gasto sem licitação. Pelos cálculos do senador – que está rompido com o bolsonarismo –, 200 deputados federais receberam o direito de indicar o repasse de até R$ 10 milhões. No Senado, 50 colegas de Olimpio receberam até R$ 30 milhões. E para onde foi esse dinheiro? Durante a pandemia, em vez de a verba ser mandada para onde era mais necessária, onde está morrendo gente e a curva da doença cresce, o recurso foi para onde o parlamentar quis, sem nenhuma garantia de que isso obedeceria a critérios epidemiológicos, morais ou éticos.

A distribuição de recursos não foi a única polêmica da gestão do general Pazuello na Saúde. Ele nomeou 20 militares leais a Jair Bolsonaro para o ministério, depois que dois médicos se recusaram a agradar os desejos do presidente sobre a cloroquina. O general não tem um C.R.M para cuidar. Pode mudar o protocolo sobre o uso da droga sem ter de responder por isso para seus pares. Em sua patota está o coronel Luiz Otavio Franco Duarte, outro profissional do Serviço de Intendência do Exército. Duarte deve, portanto, saber fazer licitações e conhecer a legislação.

Na segunda-feira, dia 13, o coronel disse a gestores de hospitais e secretário estaduais: “Eu orientei o governo de Natal (RN). ‘Ah, coronel, está 600% acima (o preço)’. Compre. Abra processo administrativo, entregue ao Ministério Público”. Um gestor deve ter cautela. Sem ela, quem pagar sobrepreço de 600%, não ficará isento de responsabilização. Um procurador da República recém-aprovado em um concurso sentiria o cheiro de queimado na fala do coronel. Secretários de Saúde reclamavam havia um mês da omissão do ministério no abastecimento de medicamentos, principalmente, de produtos para sedar e intubar pacientes.

A novela da falta de remédios teve novo capítulo na sexta-feira. Para fugir da acusação de inépcia, bolsonaristas começaram a divulgar um vídeo do Comando Militar do Sul. Ele mostrava caminhões do 3.º Batalhão de Suprimentos, que foi apanhar em Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, uma carga de remédios comprados pelo Ministério da Saúde para Santa Catarina. O comboio foi tratado como a salvação da lavoura. Nenhuma palavra sobre a razão de a logística do ministério esperar faltar remédios para então dar a usual resposta do governo para suas crises: chamar o Exército. Convocou-se a tropa para resolver um problema criado por militares.

No passado, generais diziam que a Força era usada para esconder fracassos de governos. Em 2017, o general Villas Bôas escreveu no Twitter: “Preocupa-me o constante emprego do Exército em “intervenções” (GLO) nos Estados. Só no RN, as FA já foram usadas 3 X, em 18 meses. A segurança pública precisa ser tratada pelos Estados com prioridade “zero”. E como deveria ser tratada a compra de medicamentos pelo Ministério da Saúde em uma pandemia? O problema de chamar o Exército até para questões cotidianas, como transportar remédios, é que, cada vez que isso é feito, o governo finge ser competente e faz da excepcionalidade uma falsa solução.

Políticas públicas devem ser permanentes. Numa pandemia, quando falta remédio, o paciente morre. O Exército pode muito. Mas não pode ressuscitar os mortos. Ele pôs 25 mil homens para combater a pandemia. Seus generais se ressentem das críticas. Não aceitam a associação ao genocídio que lhes foi imposta pelo ministro Gilmar Mendes. O que fazer se Pazuello é general da ativa, ainda que da patota de veteranos do Comando Militar do Leste, quase todos paraquedistas ou “força especial”? É impossível sair ileso quando na Esplanada há 6 mil militares da reserva em cargos comissionados e outros 2,9 mil da ativa.

De quem é o governo afinal? O que se pode exigir do general Edson Leal Pujol quando Bolsonaro, o comandante-em-chefe, decide nomear um oficial da ativa para um cargo civil? Ele pode negar o pedido. Mas, ao fazer isso, é possível que deixe de ser o comandante do Exército. Seria o caso de se ter o comportamento de Lutero, diante da Dieta de Worms, e trovejar: “Hier stehe ich. Ich kann nicht anders! (Aqui estou, não posso agir de outro modo!)”? Ou de quem, como Galileu, diz: “Eppur si muove”? Pujol mantém-se em silêncio. Pazuello não. E defende a cloroquina.

A Sociedade Brasileira de Infectologia afirmou que a droga não deve ser usada nem mesmo nos estágios iniciais da covid-19, pois, além de não trazer benefício, ainda pode provocar riscos ao paciente. Mais. Pediu que os recursos públicos não sejam desperdiçados com o remédio que não serve contra vírus. Mesmo assim, a Saúde de Pazuello mantém a orientação para o uso da cloroquina. Pior. O coronel Duarte quis que a Fiocruz fizesse o mesmo.

Ontem foi a vez de o presidente Bolsonaro exibir como um troféu uma caixa de cloroquina do laboratório Apsen, do empresário Renato Spallicci. O empreendedor se declara bolsonarista nas redes sociais e, aproveitando a onda criada por Bolsonaro, triplicou a produção do medicamento. Enquanto isso, o Ministério da Saúde foi o autor da maioria dos pedidos feitos ao laboratório do Exército, o LQFEx, para produzir cloroquina. Quantidade produzida e destinatários não são da alçada do laboratório. Mas podem ser do interesse do Ministério Público Federal. Um governo que adora as redes sociais devia olhar as dos procuradores.

 

A subprocuradora-geral da Reppública Luiza Frischeisen lembrou ontem no Twitter que o “Brasil tem média de 1.067 mortes por dia por coronavírus na última semana; 11 Estados mais DF têm alta de mortes. Já são 75 mil vidas perdidas, se continuarmos assim, em 25 dias, chegaremos a 100 mil mortos. Números nunca antes vivenciados”. O procurador regional da República Vladimir Aras se espantou com a fala do coronel Duarte aos gestores. “Esse conselho não faz nenhum sentido; é uma péssima sugestão administrativa; e não atende a nenhum critério de boa governança …nem de lógica.” Outro procurador escreveu: “É surreal! Repito: surreal!” Falta saber como tipificariam a distribuição do dinheiro da covid por indicação de políticos e seu uso para manter a fábula da cloroquina.

Estadão