TSE discutirá politização de cultos em igrejas
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O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve retomar em agosto, após a volta do recesso do Judiciário, a discussão sobre incluir a prática de “abuso de poder religioso” entre as hipóteses que podem levar à cassação de mandatos. O debate começou há cerca de duas semanas e, segundo ministros ouvidos pelo Valor, a corte está dividida. No campo político, o início do julgamento gerou uma forte reação de integrantes da bancada evangélica e aliados do presidente Jair Bolsonaro.
Após o voto do ministro Edson Fachin, que defende que esse entendimento já deveria ser aplicado nas eleições de 2020, o ministro Alexandre de Moraes divergiu. O julgamento foi então interrompido por um pedido de vista do ministro Tarcisio Vieira.
A expectativa no tribunal é que ele devolva o processo a plenário já no início de agosto. A interlocutores, o ministro afirmou que aproveitaria o recesso para estudar o caso.
Outro magistrado também apontou que esse é um tema que exige “muita reflexão” e que o debate levantado é fruto de um “olhar arguto” de Fachin.
Já um terceiro ministro disse considerar “complicado” alargar uma regra sancionatória, uma vez que, hoje, o TSE entende que apenas o abuso de poder político e econômico podem resultar na perda do mandato.
A discussão no tribunal eleitoral deu-se a partir de uma ação que discute a cassação do mandato da vereadora Valdirene Tavares, reeleita em 2016 no município de Luziânia (GO). Ela, que é pastora da Assembleia de Deus, foi acusada de usar a igreja para garantir a sua reeleição.
No caso concreto, tanto Fachin quanto Moraes se manifestaram contra a cassação no mandato, por considerar que não havia provas que justificassem a medida. Relator do caso, porém, Fachin proferiu um longo voto e defendeu que o debate sobre o uso da religião como instrumento para conseguir votos ainda carecia de um “enfrentamento mais detalhado por parte deste Tribunal Superior”.
Para o ministro, “as manifestações do exercício religioso não podem incidir, negativamente, sobre a esfera das liberdades pessoais”. “Por essa razão, entendo que a intervenção das associações religiosas nos processos eleitorais deve ser observada com a devida atenção, tendo em consideração que as igrejas e seus dirigentes ostentam um poder com aptidão para amainar a liberdade para o exercício de sufrágio e debilitar o equilíbrio entre as chances das forças em disputa”, disse.
Ao se manifestar, Moraes divergiu do colega e afirmou não ver necessidade em especificar a previsão de cassação devido ao “abuso de poder religioso”. “Qualquer atitude abusiva que acabe comprometendo ou gerando abuso de poder político e econômico deve ser sancionado pela legislação eleitoral, nem mais nem menos”, afirmou.
Após a manifestação de Fachin, houve reação nas redes sociais, especialmente de nomes ligados à frente evangélica do Congresso. Pelo Twitter, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), uma das principais apoiadoras do governo na Câmara, falou em “perseguição”.
Ao Valor, o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), que já foi líder da bancada da Bíblia, criticou o debate levantado pelo ministro do TSE. “Acho que o ministro Fachin só quer políticos ateus, isto é um acinte ao Estado democrático de direito”, disse.
O parlamentar, que é ligado à Assembleia de Deus, defendeu que hoje a legislação já proíbe o uso indevido de espaços públicos para fins eleitorais, inclusive, ambientes religiosos.
O deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP), que é pastor da Catedral do Avivamento, também defendeu que já existem regras para impedir o “abuso do poder religioso”, como a proibição de fazer campanha dentro de igrejas e de usar o aparato da organização religiosa a favor de um determinado candidato.
Para ele, se o TSE decidir incluir essa tipificação, estará criando uma nova lei, o que é prerrogativa do Congresso. “O TSE não pode e não deve legislar, pois isso é competência privativa do Congresso. A usurpação de competências gera a insegurança jurídica, a desarmonia entre os Poderes e o descrédito do povo nas instituições”, defendeu.
O deputado evitou falar em “perseguição”, mas disse que, em alguma medida, existe preconceito em relação à religião. “O Judiciário nunca criou o abuso do poder sindical, mesmo quando as centrais sindicais eram verdadeiras potências eleitorais por seu prestígio e poder econômico e apoiavam abertamente candidaturas”, comparou.
Para ele, como agora chegou a vez dos evangélicos se organizarem, isso “gera receio, pois já somos um terço da população e um quinto do Congresso”. “Como não nos conhecem e têm uma visão estereotipada do que somos, têm medo de nós. Daí reagem”, avaliou.
O tema também divide especialistas em direito eleitoral. Para a advogada Maria Claudia Bucchianeri, não há por que criar a figura do “abuso do poder religioso”. Segundo ela, que é uma estudiosa do tema, não há nada na Constituição que justifique a adoção dessa tipificação. “Não é possível a criação dessa figura que não está na lei”, disse.
Ela defende ainda que o líder religioso tem plena liberdade para apoiar um candidato e participar de atos de campanha, e argumenta que a única vedação é em relação ao financiamento eleitoral. “Ele [o religioso] não perde o seu direito de participação política. Isso é plenamente possível, desde que a instituição igreja não financie um candidato, tal qual um sindicato também não pode fazer”, disse.
Já o advogado Rafael Mota viu com bons olhos a discussão iniciada pelo tribunal. Em 2018, ele atuou na campanha de Marina Silva (Rede), que é evangélica. “O abuso de poder de autoridade religiosa é uma modalidade do abuso de poder político. Com o julgamento do caso pelo TSE, independentemente do resultado do caso concreto, há sinalização de que o abuso de poder de autoridade religiosa deverá ser visto com mais atenção pela Justiça Eleitoral”, disse.
Para ele, “a Constituição e a legislação têm como objetivo que o eleitor seja livre para votar sem qualquer coação ou influência de qualquer autoridade, seja ela exercida, por exemplo, por um empregador ou por um líder religioso”.