Vazamento mostra apoio da PM do Rio a Bolsonaro

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Foto: Reprodução/ Uol

Documentos internos da Polícia Militar do Rio de Janeiro obtidos com exclusividade pelo UOL mostram que a corporação associa partidos de oposição ao presidente Jair Bolsonaro a atos de vandalismo. É com esse argumento que a corporação justificou a inclusão de aparatos de repressão em planos de policiamento para manifestações políticas no estado durante a pandemia da covid-19.

Os registros internos da PM —solicitações de policiamento, ordens de serviço e outros documentos relativos a mais de uma dezena de manifestações no Rio desde 18 de abril— revelam uma postura seletiva no tratamento de atos públicos (veja documentos a seguir).

Enquanto manifestações de oposição ao governo Bolsonaro são tratadas sempre como eventos com potencial de distúrbios, atos de apoiadores do presidente são vistos como inofensivos e até rendem elogios a bolsonaristas mesmo quando contrariaram normas de isolamento social.

Para a PM, as manifestações que justificam aparato de repressão variam de atos abertamente contra o governo a protestos como o de entregadores de aplicativos no dia 1º deste mês.

O uso de grande aparato policial, que envolveu inclusive batalhões de elite, é motivado segundo a PM pela “possibilidade de grande mobilização de manifestantes em virtude da convocação de adeptos dos partidos políticos opositores e anarquistas, com histórico em atos anteriores desse mesmo gênero, registros de confusões e depredação do patrimônio público”.

Partidos de oposição ao governo Jair Bolsonaro viram grave ameaça à democracia na associação com atos de vandalismo revelada pelo pelo UOL —um deles prometeu ir ao STF para questionar ações policiais parciais.

Por sua vez, protestos bolsonaristas nunca são associados pela corporação a riscos de distúrbio. A possibilidade de confrontos só é mencionada quando a PM especula a chance de manifestantes contra o governo dividirem espaço com bolsonaristas no mesmo local —sobretudo após atos contra e a favor do governo se encontrarem na avenida Paulista, em 31 de maio.

Para o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), a forma de atuação da PM do Rio é inconstitucional. “A medida da polícia do Rio é frontalmente ilegal, porque trata a mesma ação [a organização de atos públicos] de dois grupos políticos de forma completamente diferente. Está discriminando oficialmente um grupo por sua orientação política e ideológica”, critica.

Procurada, a PM do Rio afirmou que “dimensiona o planejamento das operações para acompanhar manifestações políticas com base em informações estratégicas e sigilosas, colhidas pelo setor de inteligência”. Os documentos listam contudo informações ao alcance de buscas nas redes sociais.

Ainda segundo a PM, “independentemente do objetivo das manifestações, as operações seguem orientação técnica, priorizando a segurança dos cidadãos e do patrimônio público e privado. Para tanto, são empregadas equipes dos batalhões de área, assim como das unidades especiais”.

A corporação classifica os resultados obtidos no patrulhamento de manifestações durante a pandemia como “bastante satisfatórios”.

Embora críticas ao governo Jair Bolsonaro ou a seu ideário, as manifestações relatadas nos documentos da PM guardam características distintas entre si —tanto no que diz respeito à pauta de reivindicações quanto ao perfil e número de participantes. Constam na lista os seguintes atos:

7/6: Ato em defesa da democracia convocado por torcidas organizadas do América e do Flamengo na Tijuca, zona norte do Rio
13/6: Ato contra o presidente Jair Bolsonaro no centro do Rio
16/6: Manifestação contra racismo e violência policial após a morte de George Floyd
1/7: Greve dos entregadores de apps
Todos esses atos foram tratados pela PM como ocorrências com grande chance de ações de vandalismo. Já as manifestações bolsonaristas não recebem o mesmo tipo de menção.

Os documentos também mostram desequilíbrio nos efetivos empregados —há manifestações que receberam patrulhamento de mais de uma centena de PMs e atos bolsonaristas com efetivo visivelmente menor. No ato antirracista realizado na Praça 15, por exemplo, o UOL apurou que as equipes mobilizadas somavam mais de 150 homens.

A maior repressão a atos contra o presidente Jair Bolsonaro ocorre em um contexto de crescente politização das PMs em todo o Brasil. Em junho, o UOL publicou levantamento inédito mostrando que mais de 7.000 PMs foram candidatos a cargos eletivos entre 2010 e 2018, de acordo com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). A participação dos agentes na vida política teve forte aumento em 2018 em meio à onda conservadora que levou Bolsonaro à Presidência.

Um dos relatórios obtidos pelo UOL mostra que a PM solicitou uma grande quantidade de material menos letal —como balas de borracha e bombas de efeito moral— após reprimir um ato antirracista em 31 de maio.

Citando manifestações reprimidas pelo batalhão Recom (Rondas Especiais e Controle de Multidões) em 31 de maio, o comandante da unidade, coronel Marcelo Moreira Malheiros, pediu para reforçar o estoque desse tipo de material por prever um aumento de confrontos com manifestantes descritos por eles como “black blocs” e “novos antifas” —nome como é chamado movimento antifascista, que esteve à frente de uma série de atos em defesa da democracia por todo país (veja fac-símile a seguir).

A lista de material inclui dez lançadores AM-640, capazes de disparar bombas de gás lacrimogêneo a 90 m de distância, bem como sete caixas de dois tipos diferentes de projéteis de gás lacrimogêneo usados nessas armas.

Há ainda a solicitação de 30 caixas de balas de borracha, além de cinco caixas de diferentes tipos de bombas de efeito moral, som e luz e gás lacrimogêneo. O comandante solicita também 20 unidades de spray de pimenta.

Parlamentares de oposição ao governo Jair Bolsonaro procurados pelo UOL reagiram com indignação à associação de partidos políticos a atos de vandalismo em documentos oficiais da PM. Para eles, não cabe à corporação fazer juízo ideológico de manifestações e o fato de isso ocorrer representa ameaça às liberdades democráticas no estado do Rio.

Deputado estadual e ex-ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc (PSB-RJ) afirmou que seu partido deve apresentar nas próximas semanas uma ação no STF para questionar a legalidade de ações parciais da PM em relação a protestos políticos.

Nós do PSB recentemente conseguimos liminar no STF sobre operações policiais durante a pandemia. A próxima ação que vamos propor vai ser contra essa forma desigual de atuação em manifestações. Esses documentos mostram que a polícia, ao invés de servir à sociedade, pertence a uma fração que está no governo. O bolsonarismo tem uma de suas bases na polícia

Carlos Minc, deputado estadual PSB-RJ

Minc ainda afirmou que irá articular na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio) uma manifestação oficial cobrando que o comando da corporação garanta uma atuação isenta de suas unidades em manifestações pró e contra o governo.

“Isso é inaceitável no Estado Democrático de Direito, porque a PM é paga pelo cidadão. Se tiver lado não é polícia, é milícia”, criticou.

Na mesma linha, o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) classificou como “graves” as menções a partidos políticos em documentos oficiais da PM do Rio.

“Não cabe à PM opinar sobre os atos. O papel dela em qualquer ato público deve ser o mesmo: proteção ao patrimônio público e ao direito de livre manifestação”, disse.

A gente não pode permitir um caldo de cultura que naturalize a ideia de que qualquer manifestação crítica ao governo ou que tenha determinada linha ideológica vá sofrer repressão policial. O comando da PM precisa cumprir a lei, não pode haver pré-disposição para o confronto

Marcelo Freixo, deputado federal PSOL-RJ

O sociólogo João Trajano Santo-Sé, coordenador do LAV (Laboratório de Análises da Violência) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), afirma que os documentos evidenciam uma ação deliberada da PM do Rio —também seguida por polícias de outros estados— de tentar exercer influência política.

“É muito preocupante porque a gente vê uma tendência das polícias se tornando um ator político. Isso é muito grave porque estamos falando do braço estatal que detém o uso legítimo da força. Isso é um diferencial muito importante que deveria proibir que se posicionassem como um ator político como os outros”, afirma.

Ainda segundo ele, o discurso de governadores como Wilson Witzel (PSC), no Rio, e João Doria (PSDB), em SP, serviu como estímulo para esse tipo de ação, que agora se volta contra eles. “Desde a campanha eleitoral estão acenando com carta branca para as polícias. Julgavam que estavam se ajudando, porque achavam que a polícia ia ficar do lado desses. Não contavam que a polícia ia assumir isso como uma autonomização”, acrescenta.

“Uma polícia sem controle, que não presta contas e que alinha sua visão de mundo ao bolsonarismo é quase uma polícia privada, de interesses privados de seus integrantes ao invés da polícia que defenda a todos, o que é um direito constitucional”, completa Renato Sérgio de Lima.

Em outro relatório de inteligência, a PM do Rio chegou a elogiar a conduta de bolsonaristas durante ato político que desrespeitou as normas de distanciamento social (veja fac-símile abaixo). De acordo com a PM e com o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), os deputados estaduais Anderson Moraes e Alana Passos —ambos do PSL e muito próximos da família Bolsonaro— estiveram entre os organizadores da carreata.

O documento elaborado pela Seção de Inteligência do 2º BPM (Botafogo), popularmente conhecida como P2, trata de uma carreata de apoiadores de Bolsonaro na zona sul carioca em 18 de abril.

Apesar da proibição de atos políticos —estabelecida por decreto do governador Wilson Witzel (PSC)—, o comando do policiamento deixou a carreata transcorrer normalmente, apenas escoltando-a entre o aterro do Flamengo e São Conrado —trecho de 20 km pela orla da zona sul. No relatório, a corporação elogia a postura dos manifestantes.

Cabe ressaltar que a todo momento equipes do 2 BPM que estavam no local orientaram os presentes a não se aglomerarem em virtude da proibição presente no Decreto 47.006/20, o que era acatado sem qualquer resistência. As pessoas presentes apresentavam um bom nível de compreensão do que lhes era passado, muitos utilizavam mídias digitais para mensagens e vídeos ao vivo e a todo momento faziam questão de manifestarem admiração pelo trabalho da Polícia Militar

Trecho de relatório da PM sobre carreata bolsonarista

A carreata pediu o fim do isolamento social, o impeachment de Witzel e atacou em diversos momentos o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) —alvo de atos antidemocráticos investigados em inquérito no âmbito do STF. Durante a carreata, houve quem exibisse cartazes defendendo um golpe militar.

No entanto, provas obtidas pelo MP-RJ contradizem a PM. A Força-Tarefa do MP-RJ para o Enfrentamento da Covid-19 propôs uma ação civil pública contra as manifestações. “Sabe-se que todos esses eventos, sem exceção, envolvem a aglomeração de pessoas, inclusive as carretas, como está fartamente documentado nos vídeos e fotos”, disse o MP-RJ.

Ainda de acordo com o órgão, a PM vem tendo uma postura “leniente e muitas vezes incoerente” em relação a atos bolsonaristas na pandemia. O MP-RJ diz ainda que a atitude da PM frente aos atos vem sendo compreendida pela população como um apoio velado.

Governo do Rio defendeu realização de atos
A desembargadora Marianna Fux concedeu em 28 de abril liminar proibindo os organizadores de convocarem novos atos e obrigando que governo e prefeitura coibissem manifestações que violassem normas sanitárias

Contudo, ela revogou a liminar em 10 de junho. O principal argumento acolhido foi dado pelo próprio governo do Rio através da PGE (Procuradoria Geral do Estado). O órgão alegou que “não há contato físico próximo” nas carreatas e que impedir esses atos violaria a liberdade de expressão.

Procurados, os deputados estaduais Anderson Moraes e Alana Passos afirmam não terem atuado como organizadores do ato, tendo apenas participado da carreata. Moraes, contudo, admite ter divulgado a manifestação.

Alana ressalta que não pode ser responsabilizada por eventuais cartazes com pautas antidemocráticas. Já Moraes diz que alguns PMs se apresentaram afirmando que acompanhariam o ato para evitar transtornos no trânsito, mas que não houve pedido de suspensão da carreata.

As ocorrências citadas pelo coronel Malheiros em relatório da PM, para justificar reforço de estoque de artefato menos letal, têm graves denúncias de abusos cometidos por policiais —que também demonstraram posicionamento político durante o serviço.

Uma delas foi o ato “Vidas negras importam”, que reuniu cerca de 300 manifestantes em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do estado do Rio, em 31 de maio. O protesto foi convocado após a morte do menino João Pedro, 14, em operação policial em São Gonçalo (RJ). Os ativistas, que protestavam justamente contra a violência policial, foram reprimidos com brutalidade.

Com duração de uma hora, o ato terminou sem tumulto. Porém, ativistas presentes afirmaram que um grupo de pessoas chegou atrasado, após o encerramento do protesto. A versão da PM à época foi de que parte desse grupo lançou pedras contra policiais e tentou invadir o Palácio Guanabara.

No entanto, ativistas relatam que os PMs agiram com truculência em uma tentativa de liberar a rua Pinheiro Machado, via na qual fica a sede do governo fluminense. Na ocasião, cinegrafistas flagraram PMs atacando manifestantes com bombas e balas de borracha.

Um PM apontou um fuzil em direção ao rosto de um homem —o entregador de aplicativos não participou do confronto, segundo testemunhas. Após repercussão, a PM afirmou ter aberto uma apuração para avaliar a conduta do policial que apontou o fuzil.

“Já mandei eles ali queimar bandeira”, disse PM sobre antifas
A outra ocorrência aconteceu na manhã do mesmo dia, na orla de Copacabana. Um grupo de bolsonaristas protestava no calçadão da praia quando dezenas torcedores antifascistas do Flamengo e outros times chegaram ao local, posicionando-se do outro lado da avenida Atlântica.

De dentro do bloqueio policial, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), ex-integrante da PM, incitou e provocou os torcedores enquanto fazia uma transmissão ao vivo em suas redes sociais.

Ele conversou de maneira amistosa com os policiais no local. Um deles, a quem o deputado chegou a chamar de “capitão”, afirmou que havia mandado subordinados tomarem faixas de esquerda no local: “Meus amigos tá [sic] ali. Já mandei eles ali queimar aquela bandeira”, disse o policial.

Após o episódio, a PM afirmou em nota que nenhum material dos torcedores foi queimado. Destacou contudo que “agradece o elogio proferido pelo parlamentar com relação à postura do policiamento”.

Uol