Viúva de miliciano bolsonarista desconfiava de políticos

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Foto: Reprodução

Uma pessoa ouvida em investigação sobre a fuga e morte do miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega declarou que a viúva, Júlia Emília Mello Lotufo, comentou em fevereiro deste ano “não mais saber nem se teria o apoio de políticos que condecoraram o seu marido”. Segundo ela teria dito, Capitão Adriano tinha “pendências” que estariam perto de serem resolvidas no Supremo Tribunal Federal (STF).

Foragido desde 22 de janeiro de 2019, com prisão decretada pela Justiça do Rio, alvo da Operação Intocáveis – referência à blindagem do miliciano e do grupo que domina há anos de forma violenta a comunidade de Rio das Pedras -, o ex-policial militar morreu naquele mês, na Bahia, após resistir à prisão. Capitão Adriano era considerado, por policiais e promotores, um dos cabeças do Escritório do Crime (grupo de matadores de aluguel).

A investigação mais sensível e atual que orbita Capitão Adriano e familiares, no entanto, é a de envolvimento no suposto esquema de “rachadinhas” (apropriação indébita de salários de assessores), no gabinete de Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), no per[íodo em que ele foi deputado estadual no Rio (2003 a 2018). O esquema seria operado por Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador, que é policial militar aposentado e foi amigo de farda do miliciano. Os dois atuaram juntos no 16.º Batalhão da PM do Rio, em 2003.

Além dos desvios e apropriação dos da Alerj (crime de peculato) – algo estimado em quase R$ 3 milhões, de 2007 a 2018 -, são apontados lavagem de dinheiro, organização criminosa e nomeações de assessores “fantasmas”. O miliciano fazia parte do esquema, segundo o Ministério Público do Rio. A mãe, Raimunda Veras Magalhães, e sua ex-mulher, Danielle Mendonça da Nóbrega, foram empregas na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) por 11 anos, no gabinete do senador. As duas teriam recebido sem trabalhar e devolveram de, forma rastreável, pelo menos R$ 400 mil, de R$ 1 milhão que receberam de salários, entre 2007 e 2018.

Julia Lotufo é considerada peça importante para descobertas desses elos políticos e também para as apurações sobre o patrimônio e a “rede de amigos”, que ajudou a fuga de um ano do Capitão Adriano – em outra frente apuratória. Para a polícia e Promotoria, a morte do marido encerrou as acusações na Justiça dos crimes de homicídio e extorsão, ligados à milícia, mas não as apurações que orbitam a “rede de proteção” e os “sócios ocultos” – que garantiram a ele a imagem de “intocável”

Os fatos narrados a investigadores, por pessoa que terá identidade preservada, teria ocorrido depois da fuga do Capitão Adriano, de um cerco policial realizado no dia 31 de janeiro, no litoral baiano, onde o procurado passava férias com a família desde o início de dezembro de 2019.

A casa alugada em condomínio de luxo, na Costa do Sauipe, foi negociada no final de novembro por Julia Lotufo e por uma “amiga” da família, a veterinária Juliana Magalhães da Rocha – que pode ter sido “laranja” em outros negócios. O contrato de dois meses feito em nome de Juliana registra que o aluguel custou R$ 50 mil, para o período de 5 de dezembro a 5 de fevereiro.

Na luxuosa casa de praia, o miliciano passou com a família e amigos as festas de Natal e Réveillon e a do aniversário de 43 anos – no dia 14 de janeiro. Com um drone, Capitão Adriano monitorava diariamente a presença de estranho nos arredores do condomínio. Com a família circulava internamente. Registros das câmeras de segurança mostram ele e a mulher se exercitando na academia social.

As férias do Capitão Adriano foram interrompidas antes do prazo final de uso da casa. O miliciano foi surpreendido por cerco da polícia e do Ministério Público do Rio e fugiu – acredita-se que pelos fundos do terreno -, deixando para trás pertences, documentos, como uma identidade falsa e uma carteira de policial militar, e a própria família – a mulher, filhos e cachorros.

Após a fuga, o miliciano voltou para Esplanada, no interior da Bahia, onde se escondeu no sítio de Leandro Abreu Guimarães, competidor de vaquejadas e amigo, que havia o acolhido em outras ocasiões e que esteve em festa na casa de praia, na Costa do Sauipe – e chegou a ser preso. Ficou até 9 de fevereiro, dia em que deixou às pressas o local – possivelmente alertado sobre nova operação da polícia.

Capitão Adriano morreu horas depois ao reagir a tiros ao cerco. O foragido foi localizado em um povoado vizinho, Palmeiras, escondido no sítio do vereador do PSL local Gilsinho da Dedê. No início do mês, a Polícia Civil da Bahia fez a reconstituição da morte do miliciano. A versão dos policiais é questionada na Justiça pela família e Nóbrega. O advogado que representou Julia Lotufo, a mãe e as irmãs, o criminalista de Brasília, Paulo Emílio Catta Preta, é o atual advogado de Queiroz.

O relato ouvido por investigadores a no início do ano, na Bahia, registra que Julia Lotufo teria comentado que o marido saiu às pressas do condomínio na Costa do Sauipe, porque precisava responder por “algumas pendências”, mas que não seria “nada grave”. “Que muita coisa era aumentada por questão política.”

A viúva não é alvo das apurações do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaecc) sobre “rachadinhas”. Nem Julia Lotufo nem a pessoa ouvida por investigadores citam nomes dos políticos que teriam dado “apoio” ao Capitão Adriano. Em um registro do relato da testemunha – que interessa às apurações de autoridades do Rio e da Bahia – consta que, “entre outras coisas, ela (Julia) comentava não mais saber nem se teria o apoio de políticos que condecoraram o seu marido”. Teria citado ainda que “a situação do marido estaria perto de ser resolvida pelo STF”, sem dar maiores detalhes do fato.

Capitão Adriano foi homenageado com condecorações da Alerj, em 2003 e 2005, por indicação de Flávio Bolsonaro. Então policial militar, Adriano Nóbrega pertenceu a “tropa de elite” da corporação, o Bope (Batalhão de Operações Especiais), e já era acusado de envolvimento com ações ilegais. Estava preso quando recebeu uma das homenagens. Foi expulso da PM em 2014.

Flávio Bolsonaro explicou as indicações de moção e de uma medalha em homenagem a Adriano da Nóbrega, em outras oportunidades. Segundo ele, os serviços prestados como policial à sociedade motivaram as condecorações. Flávio Bolsonaro também disse desconhecer o envolvimento do homenageado com crimes e que outros policiais e militares foram homenageados.

Em fevereiro, após a morte do miliciano, Frederick Wassef divulgou nota em nome de Flávio Bolsonaro em que tratou, entre outras coisas, sobre o “ex-policial Adriano da Nóbrega” e negou existência de relação entre eles. “É fato que não existe relação entre ele (Capitão Adriano), Flávio Bolsonaro e sua família. O ex-oficial, assim como outros policiais, recebeu homenagens, há mais de 15 anos, quando se destacou por feitos heroicos e que garantiram a segurança e a proteção de famílias cariocas.”

Segundo a nota do, então advogado do senador, “segurança pública é e sempre foi uma pauta importante” para Flávio Bolsonaro. O presidente, Jair Bolsonaro, chegou a assumir publicamente a responsabilidade pelas homenagens prestadas ao ex-policial, em 2019.

Queiroz é o principal elo entre Capitão Adriano e o gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj. Junto com a mulher, Márcia de Oliveira Aguiar – outra ex-assessora parlamentar e supostamente envolvida no esquema de ‘rachadinhas’ –, foi acusado de tentativa de obstrução de Justiça e preso no dia 18 de junho, escondido em Atibaia (SP). Alvo da Operação Anjo, estava em uma casa em nome do advogado Frederick Wassef – ex-advogado do senador e conselheiro jurídico do presidente, Jair Bolsonaro.

Nesse ponto as histórias do foragido Capitão Adriano – em férias luxuosa com a família, na Bahia – e do ex-braço direito de Flávio Bolsonaro na Alerj – escondido, sem muitos recursos, no interior paulista – se cruzam. Colocando aliados do senador e familiares do miliciano juntos em uma suposta trama para atrapalhar as investigações e a ação da Justiça. Tentativas, que segundo investigadores, teria contado com ajuda jurídica de profissionais.

Os supostos elos são destacados em capítulo específico do pedido de buscas e prisão, da Operação Anjo. Nele, o Ministério Público narra o que considerou “encontros clandestinos”, entre emissários de Queiroz e familiares do Capitão Adriano. São reuniões e trocas de mensagens entre Raimunda Magalhães, o suposto operador das “rachadinhas”, sua mulher e Luiz Gustavo Botto Maia, advogado e ex-assessor de Flávio Bolsonaro. Os investigadores entendem que o objetivo dos encontros, ocorridos em Minas Gerais e Rio, era repassar orientações jurídicas do “anjo” – figura não identificada nos autos, mas que seria o advogado Wassef.

Os contatos de aliados de Flávio Bolsonaro e o aluguel da casa e o início das férias do miliciano são simultâneos, de novembro e dezembro de 2019. Pelo menos três episódios são narrados, um deles, cita suposta viagem dos envolvidos. Uma mensagem trocada entre a mulher de Queiroz e a mãe do miliciano, em 5 de dezembro, data em que iniciaria o período de uso do imóvel, na Bahia.

“Cheguei em casa agora”, escreve Márcia Aguiar para o marido. Era 18h20. “Gustavo (Botto Maia) teve que ir direto para a cidade (…) Foi tranquila a viajem (sic).” Na sequência, às 18h22, a mulher de Queiroz manda outra mensagem, desta vez para a mãe do Capitão Adriano e pergunta: “Pessoal já pegou a estrada ?”. Raimunda Veras Magalhães responde: “Só amanhã”.

Foto registra encontro, no dia anterior, de Márcia Aguiar e Botto Maia com Raimunda Magalhães na casa em que ela estaria escondida, Astolfo Dutra (MG). Em outro trecho, investigadores destacam que após um desses “encontros”, Botto Maia teria “liberado” a mãe do miliciano para “voltar para o Rio” em dezembro. Mas “o operador financeiro da organização criminosa (Queiroz) achou melhor ela permanecer escondida”. O motivo seria o temor com a “retomada da investigação após o julgamento desfavorável” de recurso no STF.

Por quatro meses, a apuração ficou parada por decisão do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli. Em dezembro de 2019, o Ministério Público do Rio retomou as investigações do caso.

Para os investigadores, “assim como Fabrício Queiroz, a ex-assessora fantasma Raimunda Veras Magalhães também seguiu a orientação de deixar o Estado do Rio de Janeiro depois de ter ciência da presente investigação”.

O advogado Paulo Emílio Catta Preta, que representava Queiroz, aponta falhas na ordem de prisão e erros de interpretação da Promotoria. Procurado, ele não foi localizado. Na Justiça, seu cliente nega crimes.

Em Brasília, o ministro João Otávio de Noronha, mandou soltar Queiroz. Presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ele concedeu ao ex-braço direito de Flávio Bolsonaro e à sua mulher, “raro” direito de prisão domiciliar – segundo especialistas. Márcia Aguiar permaneceu foragida da Justiça, até a decisão.

No início do mês, no entanto, o Tribunal de Justiça do Rio decidiu dar foro especial para Flávio Bolsonaro e retirou as apurações da primeira instância. A ação estava na 27.ª Vara Criminal, sob responsabilidade do juiz Flávio Itabaiana.

O senador Flávio Bolsonaro e sua defesa preferiram não comentar o caso. Em outras ocasiões, ele alegou ser alvo de perseguição política que visa atingir o pai. E acusa ilegalidade nas investigações do Ministério Público.

Estadão