Deputado bolsonarista investigado por fake news continua produzindo-as

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Foto: Reprodução / Arte Comprova

Uma postagem do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) engana ao sugerir que óbitos por outras doenças, como pneumonia, infarto e AVC, estariam sendo contabilizados como covid-19 no Brasil. Ele sustenta a versão com uma suposta queda no número de mortes dessas três doenças entre 2019 e 2020, que chegaria a 30 mil no caso da pneumonia.

As mortes confirmadas pelo novo coronavírus só entram nas estatísticas após resultado positivo do teste, segundo o Ministério da Saúde. A pasta afirmou à reportagem que os dados consolidados mais recentes sobre mortalidade no país são de 2018.

O Portal da Transparência do Registro Civil aponta, de fato, para a redução no número de mortes nas três causas: pneumonia (-20.569), AVC (-1.385) e infarto (-4.361). O Comprova consultou a base de dados no dia 17 de agosto, considerando o período de 1º de janeiro a 31 de julho. A data final foi escolhida com base na recomendação da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) para que seja respeitado intervalo de, no mínimo, 15 dias, por causa dos prazos legais de registro.

Esses dados, no entanto, não comprovam fraude nas estatísticas da pandemia. Como demonstrou o Comprova em outra verificação recente, o Portal da Transparência do Registro Civil apresenta revisões até de informações relativas ao ano passado.

Além disso, a mesma pesquisa, em 17 de agosto, mostrou acréscimos em causas de morte como Síndrome Respiratória Aguda Grave (+10.330), entre outras. O número de vítimas de covid-19 informado na página era de 92.193, com excesso de mortes calculado em 82.073 pessoas.

O Comprova pediu dados atualizados sobre mortalidade de covid-19 e outras doenças ao Ministério da Saúde. A pasta respondeu por e-mail que as informações consolidadas mais recentes são de 2018 e não forneceu dados relativos a 2019 e 2020, sob a justificativa de que eram “muito preliminares e sujeitos a alterações”.

O Portal da Transparência do Registro Civil, que traz comparativo entre mortes por causas respiratórias e cardíacas no período, foi consultado a seguir. O resultado da pesquisa apresentou diferenças quanto à alegação do deputado Daniel Silveira.

A reportagem, então, procurou entender as limitações das informações dos cartórios. Foram utilizadas verificações anteriores do Comprova e matérias publicadas na imprensa. A equipe também pediu a opinião de dois especialistas sobre os dados e a confiabilidade das estatísticas de covid-19, o infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e o coordenador do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), Domingos Alves.

Também entramos em contato com o deputado Daniel Silveira, por meio da assessoria de imprensa dele, para saber sobre a fonte das informações que constam na postagem.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 17 de agosto de 2020.

Daniel Silveira publicou o post em sua conta no Facebook em 11 de agosto. A peça afirma que “o número de mortos por pneumonia em 2020 tem 30 mil ocorrências a menos em relação a 2019” e que “o mesmo ocorreu com AVC e infarto”, sem citar fontes. A conclusão do texto é que “apontamentos e estatísticas não são claros ou confiáveis, pois atendem unicamente ideias políticos [sic] cumprindo uma agenda específica”.

As estatísticas de mortes por covid-19 consideram apenas casos que tiveram resultado positivo em teste. Em checagem de junho, o Ministério da Saúde afirmou ao Comprova que os números divulgados diariamente de casos e óbitos por covid-19 são informados pelos estados por meio do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe). A confirmação é feita por meio de exames RT-PCR coletados nos pacientes e encaminhados a laboratório.

A orientação também consta em nota técnica publicada em 4 de maio. No documento, o Ministério da Saúde solicita aos médicos que registrem a covid-19 como causa da morte apenas quando o paciente tiver confirmação por exame laboratorial. Se o teste ainda não estiver pronto, o termo registrado deve ser “suspeita de covid-19”. Esse paciente é considerado como um caso em investigação e não entra na contagem até que se tenha conhecimento do resultado.

Até segunda-feira, 17 de agosto, o Brasil contabilizava 108.536 vítimas do novo coronavírus, de acordo com informações do Ministério da Saúde. Foram confirmados mais de 3,3 milhões de casos no país, sendo em torno de 19 mil apenas nas últimas 24 horas.

Dados de mortalidade por outras doenças
O Comprova pediu dados de mortalidade por pneumonia, AVC e infarto nos anos de 2019 e 2020 ao Ministério da Saúde. Por e-mail, a pasta esclareceu que “os dados consolidados de mortalidade mais recentes são de 2018, retirados do Sistema de Informação Sobre Mortalidade (SIM)”. A ausência de dados mais recentes é justificada pelo fato de estes serem “muito preliminares e sujeitos a alterações”, segundo a pasta.

A origem da alegação de Silveira é outra: um vídeo gravado pela jornalista Cristina Graeml, da Gazeta do Povo, em 2 de agosto. Dois dias antes, Silveira publicou trecho de vídeo do jornalista Guilherme Fiuza com uma legenda semelhante. Fiuza, por sua vez, menciona o levantamento da repórter para alegar a redução de 30% nos casos de pneumonia. A assessoria do deputado também confirmou ao Comprova, por e-mail, que a postagem se baseou nesse conteúdo.

Graeml compara informações do Portal da Transparência do Registro Civil e afirma que, de março a julho de 2019, houve 90.052 mortes por pneumonia, enquanto neste ano foram registrados 61.000 óbitos. Em outro momento, diz que “praticamente todas as causas mortis diminuíram nesse primeiro semestre”, incluindo infarto e AVC.

Esse levantamento, no entanto, desconsidera o atraso no registro de mortes dos cartórios. A recomendação da Arpen-Brasil, associação responsável pela página, é de se respeitar uma distância mínima de 15 dias entre a data final do intervalo de pesquisa e o dia da coleta. Isso porque os registros dos cartórios obedecem aos seguintes prazos legais: 24 horas para comunicação do falecimento em cartório pela família, cinco dias para o cartório efetuar o registro de óbito e oito dias para envio do ato à Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC Nacional).

Porém, não é raro que os registros demorem mais do que duas semanas. Em outra verificação publicada recentemente, o Comprova pesquisou informações, dentro de um mesmo intervalo, em três momentos diferentes. Os gráficos mostram que não apenas os dados de 2020 foram alterados, mas também os do ano passado.

A inconsistência foi demonstrada ainda em reportagens do jornal Folha de S.Paulo e do portal Núcleo. Além da velocidade de atualização desigual entre cidades do país, a plataforma ainda sofreu com “apagões” de dados em mais de uma ocasião, o que praticamente inviabiliza análises sobre o avanço da pandemia.

Em agosto, o pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Otavio Ranzani afirmou que os registros de Minas Gerais sumiram durante dois meses, distorcendo os dados. Os números só foram atualizados nesta segunda-feira, 17. O especialista aponta ainda que a interiorização da covid-19 favorece atrasos nos registros, porque os municípios menores apresentam maiores dificuldades na transmissão das informações.

Em consulta feita no dia 17 de agosto — considerando intervalo de 1º de janeiro a 31 de julho, portanto, respeitando a recomendação da Arpen-Brasil —, a plataforma apontava para redução do número de mortes por pneumonia, AVC e infarto. Por outro lado, essa mesma pesquisa indicava aumento no número de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), causas cardiovasculares inespecíficas e por motivo indeterminado.

Ainda que as informações atuais do Portal de Transparência do Registro Civil fossem definitivas e o Brasil realmente apresentasse redução no número de casos de pneumonia, infarto e AVC, especialistas avaliam que a situação não provaria fraude alguma nas estatísticas de covid-19.

Em checagem recente do site Aos Fatos, o médico do Centro de Pesquisas Clínicas Epidemiológicas do Hospital Universitário da USP (Universidade de São Paulo) Márcio Sommer Bittencourt destacou que a diminuição de mortes por outras causas pode estar relacionada a menor procura por atendimento médico. Na falta de diagnóstico preciso, aumentam os registros genéricos quando, em condições normais, a causa seria especificada.

Para o médico infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), é possível que a covid-19 absorva mortes de pessoas suscetíveis que aconteceriam eventualmente por meio das outras causas mencionadas. Porém, entende que os dados dos cartórios não são capazes de confirmar essa relação, que também não diminui a gravidade da doença. “No final das contas, teremos um incremento absurdo [de mortes] por conta da pandemia”, afirma.

Barbosa acredita que o número de mortos por covid-19 no Brasil está subestimado, e não o contrário. “Vemos lugares em que pessoas com Síndrome Respiratória Aguda Grave acabam morrendo sem diagnóstico. É muito mais provável que esses números estejam subestimados — e que 100 mil óbitos esteja abaixo do que realmente aconteceu — do que superestimados”, argumenta.

O coordenador do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), Domingos Alves, também entende dessa forma. Ele lembra que, entre os resultados de testes laboratoriais de pacientes com SRAG para algum vírus respiratório, 96,9% são referentes ao Sars-CoV-2. Em relação aos óbitos, o número chega a 99,1%.

O Brasil teve 144.663 óbitos por SRAG neste ano, dos quais 98.195 (67,9%) foram confirmados para covid-19. Só que 41.998 (29%) não foram especificados e podem ter sido ignorados nas estatísticas da pandemia, enquanto 3.575 (2,5%) estavam com investigação em andamento.

Os dados aparecem em boletim semanal da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de 11 de agosto, e em boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, do dia seguinte.

Daniel Silveira foi eleito como deputado federal pela primeira vez em 2018, pelo PSL do Rio de Janeiro. Segundo o portal da Câmara dos Deputados, Silveira é titular nas Comissões Especiais do Fundo de Desenvolvimento do Norte Fluminense e da Política da Mobilidade Urbana, além da Subcomissão de Energia Elétrica. Nas Comissões Especiais sobre competência legal para investigação policial, do Código de Trânsito Brasileiro, e no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, Silveira é membro suplente.

No perfil publicado no próprio site, Daniel Silveira afirma ser policial militar e que sua atuação no Congresso é em nome de “uma política de tolerância zero contra criminosos, aumentando penas para crimes hediondos e contra a administração pública, especialmente a corrupção. Na segurança pública, o deputado Daniel Silveira defende mais estrutura de trabalho para policiais e bombeiros”. O texto ainda diz que Silveira defende a família e é contra a “ideologia de gênero” e a “doutrinação nas escolas”.

Em 2018, na época da campanha eleitoral, Silveira ficou conhecido por um vídeo em que aparece ao lado do então candidato a deputado estadual no Rio, também pelo PSL, Rodrigo Martins, quebrando uma placa que homenageava a vereadora Marielle Franco, do PSOL, assassinada meses antes. Quem também aparece nas imagens é o atual governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). Na época, ele fazia campanha eleitoral e discursava no palco quando a homenagem foi destruída.

Em um perfil publicado na Revista piauí, em 2019, Silveira defendeu a própria atitude: “O recado era muito simples: não permitir que, em nome de uma ideologia, possam vandalizar e tomar um território público.” Segundo a mesma reportagem, o deputado deixou de ser policial militar do Rio de Janeiro em 2018, depois de sete anos de atuação.

Em 2020, o deputado assinou 34 propostas legislativas, como autor, e, até a publicação deste texto, não havia relatado nenhum projeto. De acordo com as informações oficiais da Câmara, o deputado conseguiu aprovar 8 emendas ao orçamento da União em 2020 – duas delas destinaram um total de R$ 9.740.454,00 aos serviços de assistência hospitalar e ambulatorial e de atenção à saúde básica do Estado do Rio de Janeiro. Em junho, em meio aos protestos realizados no país contra o governo Bolsonaro e liderados por grupos denominados antifascistas, o parlamentar apresentou uma proposta de alteração na Lei Antiterrorista, para incluir os “antifas” e criminalizar o movimento.

Silveira é alvo de um inquérito aberto pelo Ministério Público Federal em julho, que apura suspeita de improbidade administrativa. Na semana passada, o site The Intercept Brasil publicou uma reportagem que afirma que o deputado teria sido preso administrativamente, quando era policial militar, e que teria usado licenças médicas indevidas para driblar um processo administrativo que poderia impedir a sua candidatura, por causa da Lei da Ficha Limpa. O deputado negou as acusações em uma live na internet.

Em junho, depois de dizer que o novo coronavírus “idiotiza as pessoas”, o deputado foi diagnosticado com a covid-19.

Em sua conta verificada no Twitter, o deputado já fez publicações sobre a pandemia em tom conspiratório, já minimizou os impactos da doença e criticou as medidas de isolamento, já atacou veículos de imprensa e agências e projetos de checagem por causa de conteúdos a respeito do novo coronavírus e já defendeu o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, como a ivermectina e a hidroxicloroquina. O vídeo publicado pelo deputado para defender a segunda droga, inclusive, já foi alvo de verificação pelo Comprova.

Silveira é um dos alvos dos inquéritos que apuram a organização e financiamento de atos antidemocráticos e o disparo de notícias falsas, ofensas e ameaças contra autoridades, ambos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista ao Estadão, ele negou envolvimento na organização dos protestos e disse desconhecer a existência de uma centralização na “coordenação ou financiamento” de grupos bolsonaristas.

O Comprova, nesta terceira fase, verifica conteúdos relacionados à pandemia da covid-19 que viralizaram nas redes sociais. Postagens como a do deputado têm sido comuns nos últimos dias, e outras publicações que distorciam dados para negar as mortes por coronavírus já foram checadas pelo Comprova.

No caso desta publicação, o deputado Daniel Silveira é uma figura pública, que já minimizou a pandemia e questionou dados oficiais e publicados por veículos de imprensa. Só na página dele no Facebook, a postagem soma mais de 16,8 mil interações, entre comentários, curtidas e compartilhamentos.

As informações que minimizam a pandemia — que já matou mais de 770 mil pessoas no mundo, segundo a Universidade Johns Hopkins — são perigosas porque podem levar as pessoas a descumprir determinações sanitárias de prevenção à doença, ou questionar o isolamento social.

Enganoso, para o Comprova, é conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Estadão