MEC não moveu uma palha para garantir ensino remoto
Foto: EVARISTO SA / AFP
O segundo relatório de acompanhamento das ações do Ministério da Educação (MEC) durante a pandemia, produzido pela Comissão Externa da Câmara (Comex/MEC) que monitora a pasta e obtido com exclusividade pelo GLOBO, acusa o governo de não tomar nenhuma medida para garantir o acesso de estudantes com deficiência à educação remota durante a pandemia.
O texto descreve o cenário como “preocupante” e cita as constantes trocas de ministro na pasta. No documento, a Comex/MEC emite 16 recomendações ao Poder Executivo Federal e três para a Câmara dos Deputados.
O documento aponta ainda a baixa execução orçamentária dos recursos da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec). Até o momento, foram gastos R$ 505.242.177, o que representa 17% da verba prevista para 2020, de cerca de R$ 2,2 bilhões. Nessa etapa, a execução da verba para atividades de fomento a pesquisas e inovação foi de apenas 2,28%.
“O cenário apresentado é preocupante, visto que a alta rotatividade prejudica o andamento de políticas educacionais voltadas à pandemia e ao pós-pandemia. Além disso, fragiliza ações de coordenação entre o ministério e demais entes federados, o que gera descompasso na implementação de ações efetivas para a volta às aulas e na definição de um calendário letivo para as redes escolares”, destaca o relatório.
Embora adote um discurso de promoção da inclusão, impulsionado sobretudo pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, o Executivo não implementou nenhuma política para garantir que esse público seja assistido durante o ensino remoto imposto pelo isolamento social. De acordo com dados do Censo Escolar 2019, divulgado neste ano, o Brasil tem 1,3 milhão de matrículas na educação especial, número que tem crescido ao longo dos anos em todas as etapas de ensino.
“Até julho de 2020, nenhuma medida havia sido tomada pelo governo federal no sentido de promover a educação do campo, de povos indígenas, quilombolas ou a educação inclusiva durante a vigência das políticas de isolamento social”, diz o relatório. “Não detectamos medidas da Semesp que tenham como objetivo implementar o Atendimento Educacional Especializado em ambiente domiciliar ou, ainda, que visem prestar apoio financeiro às redes por meio da distribuição de recursos educacionais para a acessibilidade.”
A Semesp (Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação) do MEC é a responsável por traçar políticas para esses públicos, mas a comissão da Câmara aponta um vácuo na atuação do órgão.
Segundo o grupo, o ensino voltado para pessoas com deficiência e minorias como quilombolas e indígenas, além da educação no campo, já tem uma estrutura frágil, o que demanda uma atuação mais contundente por parte do poder público para viabilizar o acesso dos estudantes aos conteúdos durante a pandemia. Nesse sentido, caberia à Semesp editar ações para viabilizar, por exemplo, o acesso à internet, proporcionar profissionais qualificados para fazer o acompanhamento desses estudantes durante a pandemia, além de fornecer estrutura para envio de materiais pedagógicos.
Apesar dessas necessidades, as ações da Semesp foram pouco efetivas no campo prático. À Comex, a secretaria afirmou que tem realizado reuniões com a Casa Civil para monitorar as ações relativas a esse público. A Semesp menciona sua contribuição para documentos do Conselho Nacional de Educação (CNE), utilizados como diretrizes para as redes. O trecho do parecer do CNE com orientações aos sistemas de ensino sobre a retomada de aulas e o atendimento às pessoas com deficiência foi contestado pelo Ministério Público Federal por equiparar deficiência a comorbidade e, na opinião do órgão, “promover a exclusão”.
A secretaria menciona ainda a liberação de recursos da ordem de R$ 30 milhõespara fornecer água a escolas do campo; R$ 19 milhões para a formação indígena; R$ 5 milhões para a Educação Especial e R$ 2 milhões para a Educação Bilíngue de Surdos. A Semesp não esclarece, no entanto, quando esses recursos foram disponibilizados.
— A secretaria poderia ter atuado em conjunto com os entes federados, no financiamento de material impresso, visual ou sonoro voltado para esse público e ter ainda incentivado a capacitação e contratação de apoio voltadas ao Atendimento Educacional Especializado, essencial na pandemia. É preciso ter um olhar diferenciado para aqueles que estão em situação desigual e enxergar a pessoa com deficiência como estudante. Já na volta às aulas, lamentavelmente, a tendência é ver as pessoas com deficiência se distanciarem ainda mais dos estudantes que não precisam de ferramentas de acessibilidade e inclusão para garantir a adaptação às aulas remotas — critica o coordenador da Comex/MEC, deputado João Campos (PSB-PE).
A Comex/MEC foi criada em abril de 2019 para fiscalizar o trabalho do Ministério da Eucação e é composta por sete parlamentares além de João Campos: o vice-coordenador Felipe Rigoni (PSB-ES), a relatora Tabata Amaral (PDT-SP), e os coordenadores por temas Professor Israel Batista (PV-DF), Luísa Canziani (PTB-PR), Eduardo Bismarck (PDT-CE), Tiago Mitraud (Novo-MG) e Aliel Machado (PSB-PR).
Diante do cenário, entre outras medidas, o relatório recomenda que o MEC implemente uma política que promova o acesso das famílias a recursos educacionais para acessibilidade, além de ofertar atendimento especializado na casa dos estudantes e editar diretrizes para lidar com danos psicológicos e cognitivos de alunos com deficiência.
Nesse sentido, o relatório ressalta a defasagem no acesso ao ensino remoto no país e menciona que o programa do governo “Educação conectada”, que pretende oferecer internet para as escolas, tem alcance limitado e não atende à demanda.
Na semana passada, em resposta à mesma comissão da Câmara, o MEC afirmou desconhecer detalhes sobre o alcance do ensino remoto no país.
— Há uma paralisia no governo federal como um todo, e a educação especial vem na esteira disso. É importante ver o quanto o governo está paralisado em relação também aos programas que já existiam na área. Houve descontinuidade. Não vemos mobilização para retomar o que existia, ou aprimorar, e muito menos políticas novas— afirma Meire Cavalcante, pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença da Unicamp.
Relatora da Comex/MEC, a deputada Tabata Amaral (PDT-SP) afirma que o legislativo tenta cobrir os hiatos deixados pelo governo com a formulação de projetos de lei, como a iniciativa que tramita na casa para garantir o acesso à internet aos alunos e professores da educação básica por meio de recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust).
— O programa Educação Conectada nunca garantiu que os estudantes tivessem internet em casa. A portaria do MEC se restringiu ao espaço físico das escolas e não nas residências dos alunos, de onde elas de fato estão tentando acompanhar as aulas. Essa restrição não atende à demanda da Educação Básica por conectividade e acesso à internet e aos meios tecnológicos durante o período de suspensão de aulas e na implementação do ensino híbrido — argumenta a deputada.
— A verdade é que não há nenhuma política educacional para o Brasil implementada ou desenhada pelo MEC. O governo, presidido por Jair Bolsonaro, não só não prioriza a educação como a menospreza e ataca, transformando-a em palco para uma guerra ideológica que ameaça os direitos de milhões de jovens e crianças a uma educação de qualidade.
Um trecho da resposta do MEC à Câmara no âmbito da Semesp chamou a atenção de especialistas na área. A pasta elenca como uma das medidas da secretaria no âmbito das pessoas com deficiência a “inclusão das escolas-polo na Política Nacional de Educação Especial que, ao contarem com salas de recursos específicas e colegas de turma com a mesma deficiência na mesma sala, seriam importantes para a promoção da interação, socialização e comunicação com profissionais dentro de uma equipe pedagógica focados no atendimento desse público”.
A afirmação aponta para uma mudança polêmica na política de educação inclusiva do país. Especialistas e ativistas, em geral, são contrários à separação de estudantes com deficiência em classes específicas.
No final do governo do ex-presidente Michel Temer, uma movimentação para rever a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), implementada em 2008, causou discussão na área por possibilitar a retomada das chamadas “classes especiais”.
— Depois de tudo que o Brasil avançou, um governo cogitar trazer de volta a segregação com base na deficiência é algo retrógrado, que cheira a mofo. Estão propondo o oposto que prevê a Convenção da ONU e, portanto, a Constituição— critica Meire Cavalcante.