STF fez história por indígenas, diz escritor
Foto: Sérgio Cohn/ Divulgação
O escritor indígena Ailton Krenak, liderança da etnia que carrega no sobrenome, acompanhou com atenção a sustentação oral do advogado Eloy Terena – também indígena – no Supremo Tribunal Federal (STF) nessa segunda-feira, 3. O momento, segundo Krenak, já é mais simbólico do que qualquer resultado que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF/709) possa ter. A ação, que questiona a omissão do governo federal na proteção dos povos indígenas durante a pandemia, está na pauta desta quarta-feira, 5, do plenário da Corte.
“Pela primeira vez uma iniciativa indígena, com um advogado indígena, tem uma ação admitida no Supremo Tribunal Federal. Isso, por si só, vira uma página na história jurídica com relação aos direitos indígenas e ao direito que a Constituição de 88 assegura, que é a dos índios se representarem sem mediação”, disse Krenak em entrevista exclusiva ao Estadão.
A representatividade do momento, contudo, não reduz a importância do julgamento dessa quarta. Com 625 indígenas mortos por covid-19 e mais de 22 mil casos confirmados em 148 povos diferentes, segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a pandemia chegou às aldeias – e com ela, problemas já conhecidos se intensificaram.
Krenak denuncia uma cadeia de eventos, iniciada pela omissão do Estado, que levou aldeias a tomarem suas próprias medidas para isolar suas terras, o que, em algumas regiões, terminou em confronto armado, com indígenas feridos.
Confira abaixo a entrevista:
O senhor vem acompanhando o debate no Supremo? Quais suas impressões?
Eu estava assistindo a representação feita pelo advogado Eloy Terena e já cumprimentei a ele pela coragem e a clareza com que ele fez aquela fala no STF. Eu acho que ele mudou uma página da história, porque desde a Constituinte de 1988, as diferentes instâncias do poder político no Brasil protelam a aplicação da tutela sobre os povos indígenas, que acabou ficando meio que atribuição do Ministério Público, da 6ª Câmara… Pela primeira vez uma iniciativa indígena, com um advogado indígena, tem uma ação admitida no Supremo. É uma virada de página do ponto de vista da história jurídica, com relação aos direitos indígenas e ao direito dos indígenas se representarem, e não serem representados pela Funai ou qualquer outra agência do estado. De alguma maneira, o Estado brasileiro e as suas agência estavam fazendo vista grossa a esse princípio constitucional e estava estendendo a tutela a todos os campos da vida do povo indígena. Foi um evento muito importante para além do contexto de pandemia e da situação emergencial.
E qual a expectativa para a ação em si? O que o senhor espera que o plenário do STF defina?
Eu acredito que o STF não poderia perder a oportunidade de se antecipar à relatoria de Direitos Humanos da ONU, que já acolheu uma denúncia contra o Estado brasileiro, e à própria OIT, que está prestes a emitir uma decisão sobre a denúncia de genocídio contra o Estado Brasileiro. Nós temos três fóruns internacionais, todos com a mesma questão que foi cair no colo dos ministros. Se eles forem um pouco lúcidos, eles vão se antecipar e, ao invés deles esperarem que um fórum internacional julgue a política do Estado brasileiro, eles vão tomar uma decisão. Ao mesmo tempo, mostraria o lugar que essa instância do Poder Judiciário no Brasil ocupa e seria um gesto de auto-valorização o STF se pronunciar logo e a favor da petição.
A causa já teve uma pequena vitória, com a aceitação do pedido liminar pelo ministro Luís Roberto Barroso. Como você viu essa postura do ministro?
O ministro estava atendendo ao pedido de uma liminar, que tem um caráter de urgência. Ele estava atendendo a gravidade da situação. Agora, todos os ministros vão refletir sobre o tema e discutir as medidas administrativas: o que o Estado tem que fazer, pelo que as agências são responsáveis… Eu espero que a decisão venha de acordo com esse primeiro gesto de reconhecimento do ministro ao atender essa liminar.
O ministro Barroso chegou declarar que a inação do governo federal sobre os povos indígenas é “inaceitável”. O senhor concorda?
Não tenha dúvida. Nós temos um elenco de autoridades de Estado propagando ódio e ameaças contra o povo indígena. O presidente da República, ministros e militares propagam isso. Não precisa ser juiz ou ministro para saber que estamos diante de um crime, que pode ser considerado como etnocídio. Já que o presidente e seus ministros ficam irritados quando são arrolados como genocidas, eles talvez fiquem mais tranquilos sabendo que, por enquanto, eles estão sendo etnocidas. Talvez isso torne o termo mais aceitável para eles.
Qual o cenário hoje da pandemia nas aldeias indígenas? Qual o auxílio que o Estado e as agências têm dado e o que as próprias comunidades estão fazendo para barrar o avanço da doença?
Eloy Terena disse muito bem que, nesse caso, a vida e o território constituem uma unidade. Não tem como dividir uma coisa da outra. O que enfrentamos é uma associação de invasão territorial, contágio e ameaça constante à vida. Diante da omissão do Estado e das negativas da Funai, que chegou a dizer que não tinha contágio em terras indígenas, as comunidades convocaram a necessidade de fazer barreiras, mas não houve nenhuma cooperação dos governos estaduais e nem federais. Com isso, as comunidades indígenas tomaram as iniciativas próprias. Eu estou aqui na minha aldeia, na reserva indígena Krenak, na margem esquerda do rio Doce. Aqui são 130 famílias, que estão há mais de 100 dias isolados aqui dentro e determinados a controlar o nosso território para que ninguém sofra contágio. Mas tem regiões da Amazônia que não é possível.
E como ficou o isolamento no âmbito dessas aldeias?
O povo Maraguá, no Amazonas, por exemplo, sofreu um ataque na semana passada, porque colocou um cordão para evitar que aportassem em uma praia dentro do território. Pessoas de uma lancha de turismo atiraram contra eles, acertando o ombro de um e a perna de outro. Tem locais que é impossível isolar. Aí em São Paulo, no Pico do Jaraguá, como é que os parentes Guarani vão fazer isso se eles estão dentro do Rodoanel? Se você tem uma aldeia em Coroa Vermelha, em Monte Pascoal, no turismo da Bahia, como é que você vai fazer quarentena? Eu estava falando com uns parentes de lá e eles me disseram que passa uma estrada no meio da aldeia. Como é que você vai impedir que o turista passe por dentro da aldeia se tem uma rodovia?
Mas e o contexto do isolamento dentro das aldeias? O que está sendo feito com os indígenas que se contagiam?
Na nossa terra indígena não houve contágio até hoje, então nós podemos compartilhar a comida e os ambientes, porque aqui não temos a circulação do vírus, graças a Deus. Mas estamos vendo as outras aldeias passando por situações trágicas, onde houve contágio e eles tiveram que isolar o grupo contagiado, com os saudáveis entrando até para dentro da floresta, montando acampamentos.
Um dos impactos da pandemia nas cidades foi a alteração dos rituais de sepultamento, que ficaram muito mais restritos para evitar aglomeração e diminuir o risco de contágio. Como ficaram os ritos de despedida nas aldeias?
Não é possível responder genericamente, como se uma coisa valesse para todas as aldeias e povos. Tem comunidade que tomou a decisão esclarecida, orientada por médicos e profissionais da saúde, de não reivindicar os corpos de seus parentes mortos. Eles nos disseram: “não reivindiquem os corpos, porque vocês estão levando o contágio para dentro da sua aldeia, e é uma mortandade”. Quem optou por isso está sofrendo, mas está entendendo. Já as aldeias que não foram por aí, pagaram um preço muito alto. Teve uma aldeia que quis celebrar o rito funerário de um ancião e o resultado imediato foi que as pessoas que conduziram o ritual contraíram covid. Tudo por causa de um corpo que deveria estar isolado, mas foi mobilizado para atender o pedido daquela aldeia.
O que seria uma boa resolução para as comunidades indígenas? O que teria que ser efetivado para que a saída dessa pandemia fosse mais segura?
O gesto mais grandioso que o Estado brasileiro poderia fazer é a desintrusão das terras indígenas de qualquer tipo de ocupação estranha: garimpo, contrabando, caça ilegal, madeireiras… Agora era a hora de tirar toda essa complexa rede de contágio de dentro dos territórios. Depois, repetir a quarentena de cada povo. Esse é um passivo que o Estado tem conosco desde 88, que já poderia ter sido feito no passado. Já que eles dizem que não vão mais demarcar terras indígenas, que pelo menos garantam aquelas que já estão demarcadas.
Mas não seria importante alguma medida que facilite o acesso à saúde, como tratamentos e internações, que exigem uma estrutura maior?
Não, pelo contrário. Eu acho que quanto mais longe dessa tralha hospitalar, melhor. Os povos indígenas não estão reivindicando hospital e nem que aporte em seus territórios toda essa rede infectada de saúde. Basta que respeitem o SUS, os distritos sanitários indígenas que já estão construídos há mais de 20 anos, e que liberem os recursos que são destinados a essas ações, sem manipulação e chantagem com o dinheiro da saúde indígena, porque é o que estão fazendo hoje.
Como assim?
Estão fazendo manipulação e chantagem, usando o orçamento da União que deveria ser mandado para a saúde indígena e eles ficam fazendo palhaçada com esse recurso. Por exemplo, levaram mulheres de militares para fazer maquiagem das índias Yanomami. É um espetáculo grotesco, uma vergonha.