Termina mandato bolsonarista na presidência do STJ
Foto: Gabriela Biló/Estadão
Às vésperas de assumir a presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro Humberto Martins disse ao Estadão que o inconformismo com decisões judiciais deve ser resolvido no próprio Judiciário. A declaração é um recado às frequentes “insatisfações” causadas pela atuação das Cortes superiores, muitas vezes chamadas para arbitrar conflitos que explodem no meio político.
“O inconformismo com decisões judiciais se resolve no âmbito do próprio Poder Judiciário, por meio dos recursos judiciais pertinentes, o que é saudável e inerente ao sistema democrático em que vivemos”, afirmou ele ao Estadão, em rara entrevista. As respostas foram enviadas à reportagem por escrito.
O magistrado alagoano, de 63 anos, chega ao comando do STJ na próxima quinta-feira, 27, depois de uma turbulenta gestão de seu antecessor, João Otávio de Noronha, considerado centralizador e pouco aberto ao diálogo pelos seus pares. Nos bastidores, Noronha foi atacado por atender aos interesses do Palácio do Planalto e colocar em prisão domiciliar o ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz e sua mulher, Márcia Oliveira de Aguiar, então foragida da Justiça.
A decisão que favoreceu o ex-servidor do gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, tomada no plantão do Judiciário, acabou derrubada pelo relator do habeas corpus, Felix Fischer. A “guerra de liminares” gerou desconforto no tribunal. “Direito é debate e há possibilidade de entendimentos diferentes sobre os mesmos fatos. Diferentemente das ciências exatas, nas ciências humanas, como no caso do Direito, os fatos e a lei são objeto de interpretação pelo aplicador da lei, sendo natural, muitas vezes, a divergência de opiniões”, afirmou Martins ao ser indagado sobre o episódio.
Um dia após Fischer mandar Queiroz de volta para a cadeia, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu manter o ex-assessor em prisão domiciliar.
“O importante é que as decisões sejam fundamentadas e demonstrem as razões condutoras do resultado. Em relação ao caso em questão, deixo de fazer qualquer comentário em razão do preceito da Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), que veda aos magistrados comentar sobre decisões ou casos em julgamento”, acrescentou o futuro presidente do STJ, evitando entrar na polêmica.
Recentemente, o tribunal se viu no epicentro de apurações que miram compras emergenciais feitas por governadores relacionadas à pandemia do novo coronavírus – os governadores do Rio, Wilson Witzel (PSC); do Pará, Helder Barbalho (MDB); e do Amazonas, Wilson Lima (PSC), são alvo de investigações. Os chefes de Executivo estadual possuem prerrogativa de foro perante o STJ.
Para o magistrado que vai comandar a Corte, o Judiciário não pode se omitir, já que a sociedade espera dele “uma solução para os conflitos sociais”. “Em minha opinião, não há conflito entre os Poderes, pois é exatamente em decorrência das lacunas, da inexistência das leis ou da interpretação extensiva das normas vigentes, que se abre espaço para o ativismo judicial”, disse. “É óbvio que os juízes têm limites em sua atuação, e este limite ele encontra na própria Constituição. O que não é possível aceitar é que as demandas da sociedade fiquem sem solução.”
Além do “ativismo judicial”, outra crítica frequente à magistratura diz respeito aos supersalários. Na avaliação de Martins, as queixas às remunerações da Justiça geralmente ocorrem por “desconhecimento ou por uma leitura superficial dos fatos”. “É preciso ficar claro que as remunerações das carreiras jurídicas são equivalentes. Cada carreira procura oferecer bons salários a fim de atrair bons quadros para as suas fileiras. Assim, a remuneração dos magistrados é criticada em comparação a que outras remunerações? A relevância da atividade dos juízes para a sociedade está sendo ponderada? As restrições à sua vida profissional e pessoal estão sendo levadas em consideração?”, questionou.
Como revelou o Estadão no dia 12, apesar das dificuldades impostas pela crise aos governos estaduais, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) propôs aumento de 55% (R$ 6,8 bilhões) em seu orçamento para 2021. Pagamento de salários e despesas com pessoal estão entre os itens com os maiores saltos nos gastos previstos.
“É óbvio que exageros podem ocorrer pontualmente, e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por diversas vezes, vetou pagamentos de valores que julgou indevidos. Mas tais ocorrências não devem ser generalizadas, sob pena de não atrairmos para a magistratura profissionais competentes e dedicados como atualmente são os juízes brasileiros”, afirmou Martins, sem mencionar o caso do tribunal paulista.
Antes de assumir o comando do STJ, Martins vai se despedir da Corregedoria do CNJ, órgão responsável por punir juízes. Até hoje, 113 magistrados foram punidos, de acordo com a assessoria do órgão. “Não é um número pequeno, principalmente quando se leva em conta que a função correcional dos magistrados é feita principalmente pelas corregedorias de cada um dos tribunais”, afirmou.
A relação pode aumentar nesta semana. Na terça-feira, o CNJ deve abrir processo disciplinar contra o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira, do TJ-SP, que ofendeu e tentou intimidar um guarda civil municipal de Santos ao ser abordado por estar sem máscara na rua. Segundo o Estadão apurou, o episódio provocou indignação entre conselheiros, que avaliam reservadamente já afastá-lo do cargo. “O julgamento deve sempre ser técnico e afastado das paixões locais, a fim de que possa prevalecer a Justiça”, disse o ministro, que está cuidando do caso.
Martins chegou ao STJ em 2006 por indicação do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com forte apoio do senador Renan Calheiros (MDB-AL), de quem é próximo.
O novo presidente do STJ é um dos nomes cotados por auxiliares de Jair Bolsonaro para as duas vagas que serão abertas no STF ao longo do mandato do chefe do Executivo – Celso de Mello se aposenta em novembro deste ano; Marco Aurélio Mello, em 2021. Bolsonaro já disse reiteradas vezes que pretende indicar um nome “terrivelmente evangélico” para o Supremo.
Evangélico – mas “não terrivelmente evangélico”, segundo suas próprias palavras –, Martins afirmou que busca “seguir os ensinamentos do nosso Cristo e da nossa Bíblia Sagrada”. “Temos hoje o nosso advogado no plano espiritual, o nosso Cristo, e o juiz, o nosso Deus”, concluiu ele.