Celso de Mello decidiu por depoimento presencial sob jurisprudência do STF
Foto: Gabriela Biló / Estadão
Para determinar que Jair Bolsonaro preste depoimento presencialmente no inquérito que apura suposta tentativa de interferência do presidente na Polícia Federal, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, apontou diferentes precedentes da corte para amparar o entendimento de que os chefes de Poderes, quando sujeitos a investigação criminal, não tem direito à prerrogativa de depor por escrito. Entre as decisões anteriores do STF citadas pelo decano está uma proferida pelo ministro Teori Zavascki em 2016, que negou depoimento por escrito ao senador Renan Calheiros (MDB-AL), à época em que era presidente do Congresso Nacional.
Na ocasião, Renan pediu para prestar depoimento por escrito no âmbito de inquérito em que era investigado por corrupção e lavagem de dinheiro – apuração que também implicava o ex-deputado Aníbal Gomes. O então procurador-geral da República, Rodrigo Janot se manifestou contra o pedido do senador, sob o entendimento de que a prerrogativa do depoimento por escrito é aplicável somente para testemunhas e não para investigados. O posicionamento é contrário ao do atual chefe do Ministério Público Federal, Augusto Aras, que defendeu que Bolsonaro prestasse por depoimento por escrito.
“Com efeito, aqueles que figuram como indiciados (inquérito policial) ou como réus (processo penal), em procedimentos instaurados ou em curso perante o Supremo Tribunal Federal, não dispõem da prerrogativa instituída pelo art. 221 do CPP, eis que essa norma legal somente se aplica às autoridades que ostentem a condição formal de testemunha ou de vítima’”, registrou Teori na decisão proferida em 2016 e reproduzida por Celso.
Além do precedente de Renan, o decano citou ainda uma decisão do ex-presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, ao destacar que o artigo 221 do Código Penal, que trata da possibilidade do depoimento por escrito por chefes dos Poderes da República, somente pode ser invocado quando os mesmos constarem como testemunhas em determinado processo.
“Cuidando-se de interrogatório, a única previsão para que o investigado o faça por escrito repousa nos incisos II e III do art. 192 do CPP, no caso dos mudos e dos surdos-mudos”, registrou Toffoli na decisão lembrada por Celso de Mello.
O decano também indicou que o ‘substancioso corpus doutrinário’ que citou em sua decisão também vai na linha do que defendem juristas e professores. Celso chegou a citar um artigo do procurador regional da República em Brasília Vladimir Aras publicado no Blog em maio.
Apesar de não admitir a possibilidade de Bolsonaro prestar depoimento por escrito, uma vez que é investigado, Celso apontou que em tal posição o presidente tem, como qualquer outra pessoa, algumas garantias fundamentais, podendo até se recusar a comparecer ao interrogatório, ou então, se comparecer, exercer o direito ao silêncio ou o de ‘não ser obrigado a produzir provas contra seus próprio interesses’.
Ao determinar a oitiva presencial de Bolsonaro, Celso disse ‘não desconhecer’ que a possibilidade do depoimento por escrito – pleiteada pelo atual chefe do Executivo – foi garantida ao ex-presidente Michel Temer em duas ocasiões distintas.
No entanto, para Celso, as decisões que garantiram tal ‘benefício’ a Temer – proferidas pelos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin – foram dadas sob uma orientação ‘apoiada em sumária fundamentação’, que não pode ser aplicada aos chefes dos Poderes da República, inclusive ao próprio presidente, quando se registrar situação em que eles figurem como suspeitos, investigados ou réus.
O caso Temer foi o principal argumento do recurso da Advocacia-Geral da União contra a decisão de Celso de Mello. Um dos precedentes do Supremo usados pela AGU foi a decisão tomada em 2017, pelo ministro Luís Roberto Barroso, ao permitir que o ex-presidente apresentasse esclarecimentos por escrito sobre uma investigação envolvendo irregularidades no setor portuário. O ministro Edson Fachin, relator de um outro inquérito, aberto com base na delação da JBS, garantiu a Temer o mesmo direito.
“Note-se: não se roga, aqui, a concessão de nenhum privilégio, mas, sim, tratamento rigorosamente simétrico àquele adotado para os mesmos atos em circunstâncias absolutamente idênticas em precedentes muito recentes desta mesma Egrégia Suprema Corte”, afirmou a AGU ao STF.
O órgão acionou o Supremo após receber um ofício da PF que informou a intimação de Bolsonaro para a realização do interrogatório. No documento, a PF ofereceu três datas para que o presidente apresentasse ‘declarações no interesse da Justiça’: 21, 22 ou 23 de setembro de 2020, às 14 horas.
Enquanto o depoimento por escrito cria um “ambiente controlado”, em que os esclarecimentos podem ser ajustados e revistos por auxiliares antes de a resposta ser formalmente enviada ao STF, o formato presencial abre margem para novos questionamentos dos investigadores e o comportamento imprevisível do presidente da República.
Pelo fato de Celso estar em licença médica, o pedido do governo foi analisado pelo ministro Marco Aurélio Mello que determinou a suspensão das investigações contra Bolsonaro até que o plenário da Corte se manifeste sobre o tema.
“Mostra-se inadequada a atuação individual objetivando aferir o acerto, ou não, de entendimento do relator. Avesso à autofagia, cabe submeter ao pleno o agravo formalizado, para uniformização do entendimento”, escreveu Marco Aurélio em sua decisão.
Caberá a Fux, o recém-empossado presidente da corte, decidir a data em que o tema será analisado. De acordo com auxiliares do Supremo, Fux deverá consultar Celso antes de marcar a data do julgamento. A tendência é que a discussão só ocorra quando o decano já estiver de volta às atividades.