Dallagnol critica Aras por postura ante Lava Jato
Foto: Theo Marques/Estadão
Depois de seis anos à frente da Lava Jato em Curitiba, base e origem da maior operação de combate à corrupção já deflagrada no País, o procurador Deltan Dallagnol se despede do cargo de coordenador da força-tarefa. As horas extras de trabalho passam a ser dedicadas ao tratamento da filha de 1 ano, que vem apresentando sinais de regressão no desenvolvimento.
Em entrevista ao Estadão, Deltan diz que a decisão foi motivada exclusivamente pela necessidade de cuidar da família, mas admite que sentiu os ataques enquanto esteve no cargo.
“Tentaram por inúmeras vezes, sem sucesso, aplicar punições desproporcionais ou me retirar à força da coordenação”, afirma.
A saída foi anunciada em um momento de reveses para a Lava Jato. Os grupos de trabalho no Paraná, no Rio de Janeiro e em São Paulo travam um embate judicial com a cúpula do Ministério Público Federal (MPF) para impedir o compartilhamento irrestrito do banco de dados sigilosos da operação. O pedido de devassa partiu do chefe da instituição, o procurador-geral da República, Augusto Aras, que, empunhando o mote da ‘correção de rumos’, colocou sob suspeita o volume de informações conservado pelas forças-tarefa.
“A postura dele (Aras) em relação às forças-tarefa está equivocada. Elas são modelos de atuação no Brasil e no mundo. Alcançaram resultados contra a corrupção antes inimagináveis. É algo a ser mantido, expandido e replicado”, defende Deltan.
A prorrogação dos grupos de trabalho ainda é dada como incerta. À revelia dos procuradores, que temem perder independência para tocar as apurações, o Conselho Superior do Ministério Público discute a remodelação da operação por meio da centralização das investigações sob o guarda-chuva de um comando único em Brasília.
Na visão de Deltan, a discussão é ‘crucial’ para o futuro da operação. “Essa é uma das decisões que devem se pautar pelo interesse público e não eventuais questões pessoais”, argumenta.
O procurador também falou sobre o episódio do PowerPoint contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lhe rendeu um pedido de processo disciplinar apresentado pela defesa do petista e arquivado por prescrição na semana passada.
“Embora tenha se dado dentro da lei, gerou polêmicas e desgastes. Hoje faria diferente. Agora, é importante dizer que o que se disse naquela entrevista coletiva, com um esforço para ser acessível e didático para leigos, constava, de modo mais técnico, na denúncia apresentada, que embasou a condenação do ex-presidente”, ponderou.
Leia abaixo a entrevista completa:
ESTADÃO: A grande ofensiva dos adversários da Lava Jato pesou em sua decisão?
Deltan Dallagnol: Minha decisão foi cem por cento guiada pela necessidade da minha filha. A recomendação médica é de 40 horas de terapia semanais, sendo 15 em clínica e 25 em casa por meio de pais e cuidadora. Isso vira nossa vida de pernas para o ar, mas daria quantas cambalhotas na vida fossem necessárias por amor à minha família e aos meus filhos. Preciso redirecionar as horas extras que a Lava Jato exige para dentro da minha casa.
ESTADÃO: Sua saída poder aliviar a pressão e os ataques anti Lava Jato ?
Deltan Dallagnol: Se as pressões e ataques estiverem vinculados à minha posição na coordenação, sim. Contudo, se estiverem vinculados ao tipo de trabalho que é feito, não. Como colegas de outras forças-tarefa também sentem as pressões, acredito que seguirão existindo, em grau um pouco maior ou menor.
ESTADÃO: Onde está a maior ameaça à Lava Jato? No Congresso? No Supremo? Ou na PGR?
Deltan Dallagnol: Decisões dessas três esferas podem ter impactos tremendos na operação e, mais importante, no futuro da luta contra a corrupção. No momento, a questão central é a prorrogação da força-tarefa, que precisa ser decidida até 9 de setembro.
ESTADÃO: Augusto Aras quer acabar com a Lava Jato? Por quê?
Deltan Dallagnol: Tenho o maior respeito pelo procurador-geral, chefe da instituição em que estão minhas lealdades profissionais, mas a postura dele em relação às forças-tarefa está equivocada. Elas são modelos de atuação no Brasil e no mundo. Alcançaram resultados contra a corrupção antes inimagináveis. É algo a ser mantido, expandido e replicado.
ESTADÃO: O sr. se arrepende de algo que fez na Operação Lava Jato?
Deltan Dallagnol: Foi uma jornada intensa de aprendizado e aperfeiçoamento do trabalho. Várias inovações deram certo e foram fundamentais para os resultados, mas algumas não foram bem recebidas ou geraram polêmicas. Hoje, por exemplo, chamaria vários outros órgãos para participar e aperfeiçoar o acordo feito com a Petrobrás. Embora tenha permitido que mais de R$ 2 bilhões ficassem no Brasil e tenha sido reconhecida sua legitimidade por sete órgãos diferentes, gerou desgastes que poderiam ter sido evitados.
ESTADÃO: O PowerPoint foi um erro?
Deltan Dallagnol: Esse foi outro episódio que, embora tenha se dado dentro da lei, gerou polêmicas e desgastes. Hoje faria diferente. Agora, é importante dizer que o que se disse naquela entrevista coletiva, com um esforço para ser acessível e didático para leigos, constava, de modo mais técnico, na denúncia apresentada, que embasou a condenação do ex-presidente pelo Judiciário, confirmada em duas instâncias independentes.
Deltan Dallagnol: Com a saída do ex-juiz Sérgio Moro, creio que os ataques passaram a se concentrar em mim por uma questão de estratégia. É muito mais fácil construir teorias de conspiração sobre uma pessoa do que sobre 14 procuradores e 30 servidores que têm diferentes histórias e visões de mundo, os quais trabalham conjuntamente na Lava Jato em Curitiba.
ESTADÃO: Sua saída é uma vitória dos inimigos da Lava Jato?
Deltan Dallagnol: Tentaram por inúmeras vezes, sem sucesso, aplicar punições desproporcionais ou me retirar à força da coordenação, embora nenhum processo jamais tenha sido instaurado contra procuradores da força-tarefa por conta de seus atos em investigações e processos. O que estava em jogo nessas situações era muito mais do que a figura de Deltan ou a Lava Jato, mas as garantias para que promotores e procuradores possam atuar com independência e processar poderosos sem risco de vingança e retaliação. Até hoje, essa independência foi preservada e quem ganha é a sociedade. Com minha saída por razões pessoais, assume a coordenação um procurador competente, dedicado e independente e o trabalho seguirá firme.
ESTADÃO: A troca do ‘coordenador’ da força-tarefa pode indicar uma mudança de rumo na Lava Jato?
Deltan Dallagnol: Como as decisões na força-tarefa curitibana sempre foram colegiadas e o novo coordenador tem essa mesma visão democrática, a operação deve avançar de modo semelhante. É uma excelente equipe e há muito trabalho por fazer, mas decisões de Brasília podem impedir que os frutos sejam colhidos.
ESTADÃO: Acredita que a PGR deve prorrogar por mais um ano a força-tarefa? Sua saída pode influir na decisão?
Deltan Dallagnol: Essa é uma das decisões cruciais que impactará o futuro da operação e deve se pautar pelo interesse público e não eventuais questões pessoais. Os resultados do trabalho são muito significativos, basta ver que nas duas semanas anteriores oferecemos acusações por corrupção envolvendo prejuízos relevantes, de cerca de R$ 300 milhões, e atores relevantes, como ministro do TCU. Tivemos também duas fases, uma por corrupção com prejuízos de R$ 600 milhões, e o anúncio de um acordo que recuperou R$ 100 milhões. Diante da importância desse tipo de trabalho prosseguir, três órgãos da Procuradoria-Geral – a Corregedoria, a Câmara de Combate à Corrupção e o Conselho Superior – recomendaram ao PGR que prorrogue as atividades, por reconhecerem grande interesse social nisso, mas a decisão é dele.
ESTADÃO: Sem o sr. na Lava Jato, as chances do PGR obter todo acervo de dados das investigações é maior? Ou nada muda?
Deltan Dallagnol: A meu ver, nada muda.
ESTADÃO: Como vê a saída coletiva dos colegas da força-tarefa Lava Jato em São Paulo?
Deltan Dallagnol: Lamento muito, porque era um grupo que vinha se dedicando muito e obtendo resultados importantes. O trabalho em forças-tarefa é voluntário e, pelo que compreendi, ficou inviabilizado pela incompatibilidade entre a visão, entendimento e linha de atuação da procuradora responsável pelo caso e da equipe de procuradores designada para atuar com ela.