Trump e Bolsonaro parecem personagens de George Orwell

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Foto: Reprodução

Este 2020 definitivamente não é ano pra previsões otimistas. Mas seria um excesso de catastrofismo imaginar que líderes de tendência autoritária, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, terão feito, ao final dos seus mandatos, tão mal à humanidade quanto ditadores como Hitler, Mussolini e Stalin.

O fato é que, nos dias de hoje, Trump e Bolsonaro precisam lidar com freios impostos pelos arranjos institucionais e pela pressão da sociedade. São um contraponto positivo, mais sólido no caso dos EUA e ainda capenga na situação brasileira.

Muito mais frouxas eram as barreiras que os totalitarismos da primeira metade do século 20 precisaram enfrentar para se impor. Nesse sentido, houve alguma evolução, portanto.

Marcadas as diferenças, são assombrosas as semelhanças entre os métodos dos tiranos de 80, 90, cem anos atrás e dos ditadores ou candidatos a autocratas dos nossos tempos, como se conclui pela leitura do recém-lançado “Sobre a Verdade”, de George Orwell.

Com pouco mais de 200 páginas, o livro reúne textos do escritor e jornalista nascido na Índia e radicado na Inglaterra, onde se consagrou como um dos intelectuais mais contundentes da sua época. São ensaios, cartas, reportagens e trechos de romances, como “A Revolução dos Bichos” e “1984”.

Em comum entre esses escritos, pinçados da produção de Orwell ao longo de uma década e meia, de 1934 a 1949, a constatação de um crescente apagamento da verdade nas questões de ordem pública.

O autor não poupa o seu quintal e critica em alguns textos a monarquia parlamentarista sob Chamberlain e depois Churchill, mas pondera: “Na Inglaterra, ainda se acredita em conceitos como justiça, liberdade e verdade objetiva. Podem ser ilusões, mas são ilusões muito poderosas”.

O que ele vê mesmo como horror, substantivo recorrente no livro, são os regimes totalitários, aqueles que se agrupam “ao redor de um Führer sobre-humano”, como Hitler na Alemanha, Stalin na Rússia e Franco na Espanha.

Num dos ensaios, Orwell mostra como o nazismo se mobiliza para desmontar qualquer conjunto de fatos reconhecíveis, qualquer base mínima comum de concordância. “A teoria nazista nega especificamente a existência de algo denominado ‘a verdade’. Não existe, por exemplo, algo que se chama ‘ciência’. Há apenas a ‘ciência alemã’, a ‘ciência judaica’ etc.”

Vejam só. Ao defenderem enfaticamente a cloroquina para o tratamento da Covid-19, embora não haja evidências científicas de que o medicamento tenha efeito para a doença, o que fazem Trump e Bolsonaro se não criar sua própria “ciência”?

O mecanismo se repete, o que reforça a atualidade das reflexões de Orwell. Oito décadas atrás, assim como hoje, o líder político de inclinação autoritária não se rende aos fatos, mas manobra para que um simulacro da verdade esteja a serviço dele.

“Todos os fatos têm de se encaixar nas palavras e nas profecias de um Führer infalível (…) Não há mais uma coisa como uma história da nossa época que possa ser universalmente aceita”, ele escreve numa carta em 1944.

Em outras palavras, foi o que Orwell escreveu em “1984”, seu romance distópico publicado em 1949, poucos meses antes da sua morte, em 1950. “Tudo que o Partido reconhece como verdade é a verdade.”

Diversos textos do livro também reiteram a necessidade do poder de rearranjar os acontecimentos passados por meio da mentira sistemática. O autor não usa palavras ou expressões como “revisionismo histórico” ou “negacionismo”, mas é disso que se trata.

Assim Orwell talvez leve seu leitor brasileiro a rememorar um encontro na edição de 2019 de Davos, conforme registrou o documentário “O Fórum”.

Numa conversa com Al Gore, ex-vice dos EUA, Bolsonaro disse que “a história recém-passada dos militares no Brasil é muito mal contada. A verdade sempre aparece”. Para o presidente, a história a ser contada é que, mais uma vez, contra todas as evidências, nunca houve uma ditadura militar no país.

O último texto de “Sobre a Verdade” é um trecho de “1984” em que os personagens O’Brien e Winston lembram um slogan do Partido, assim mesmo, com P em letra maiúscula. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.”

Folha