Como Bolsonaro pretende aparelhar o STF
Foto: Cristiano Mariz/.
Jair Bolsonaro nunca escondeu o seu desapreço pela atual composição do Supremo Tribunal Federal (STF). Durante a campanha, ele disse que poderia ampliar de onze para 21 o número de ministros a fim de colocar “dez isentos” na Corte. Já empossado presidente da República, participou de uma manifestação, em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, que, entre outras coisas, pregava o fechamento do STF. Em um episódio singular, impedido de nomear Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal, o que classificou como uma interferência indevida no governo, cogitou desrespeitar a decisão judicial e bradou, entre irritado e ameaçador: “Acabou, p…!”. Os tempos de beligerância explícita (ainda bem) foram deixados de lado, mas não os planos de mudar a mais alta Corte do Poder Judiciário. Com a aposentadoria do ministro Celso de Mello no próximo dia 13, Bolsonaro fez a sua primeira indicação para o STF. O escolhido foi o desembargador Kassio Nunes Marques, de 48 anos, que não figurava em nenhuma lista de favoritos. A surpresa tem múltiplas explicações. A prioridade, segundo o presidente havia declarado publicamente, era nomear alguém de perfil conservador, capaz de defender no tribunal posições caras ao bolsonarismo em temas como o aborto e o armamento. Na verdade, o plano é bem mais abrangente.
Nas palavras de um dos mais importantes auxiliares do presidente, a indicação tem a ver com o próprio futuro do governo: “Hoje, a maior bancada de oposição ao Bolsonaro é o Supremo. É preciso ter alguém que possa frear minimamente esse ativismo excessivo. Alguém que tenha ao mesmo tempo o apoio da classe política e o respeito dos pares para equilibrar a discussão jurídica, promover o enfrentamento técnico. A prática dos ministros de falar fora dos autos está desequilibrando a República. Alguns se comportam mais como agentes políticos do que como magistrados”. E quem seriam os candidatos a cumprir essa missão? “O presidente tinha quatro ou cinco alternativas. O ideal é alguém com o perfil do Barroso. Ele é inteligente e envolvente. Mas ele subverte a lei, não faz o controle constitucional como deveria e legisla como se fosse ele o próprio Parlamento”, diz o mesmo auxiliar.
Indicado ao Supremo pela então presidente Dilma Rousseff, o ministro Luís Roberto Barroso é conhecido pela capacidade de formar opinião dentro e fora do tribunal. Ele votou, por exemplo, pela descriminalização do porte de maconha para uso pessoal e pela descriminalização do aborto até três meses de gestação, medidas que são rechaçadas pelos bolsonaristas. O que Bolsonaro chama de pauta progressista tem, de fato, avançado no STF. Nos últimos dez anos, o tribunal chancelou a união civil entre pessoas do mesmo sexo, o aborto em casos de bebês com malformação cerebral, a validade das cotas raciais em universidades e a criminalização da homofobia. Todos, aliás, importantes avanços civilizatórios (veja o quadro na pág. 32). Com a indicação dos substitutos de Celso de Mello, neste ano, e de Marco Aurélio Mello, no ano que vem, o presidente quer levar o pêndulo para o outro lado. O seu lado. “Os parlamentares de esquerda usaram por anos, e seguem usando, o Supremo como instrumento político por saberem de suas posturas progressistas. Eles judicializam principalmente as pautas conservadoras criando um atalho, de modo a imobilizar o Parlamento, como aconteceu no caso do casamento homoafetivo”, afirma o deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP), amigo do presidente e expoente da bancada evangélica.
Quando o debate sobre a sucessão no Supremo começou, o presidente afirmou que poderia indicar um nome “terrivelmente evangélico” para o cargo. Ato contínuo, seu ministro da Justiça, André Mendonça, pastor da Igreja Presbiteriana, passou a constar como um dos favoritos. Entre os nomes sempre lembrados também figuravam o procurador-geral da República, Augusto Aras, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, o desembargador gaúcho Thompson Flores e o ministro Ives Gandra Filho (veja o quadro abaixo). A Constituição exige que o indicado tenha entre 35 anos e 65 anos, notório saber jurídico e reputação ilibada. Não era difícil achar quem se enquadrasse nesses requisitos. Na semana passada, apareceu o azarão: o desembargador Kassio Nunes Marques, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Na terça-feira 29, Bolsonaro foi com Marques à casa do ministro do STF Gilmar Mendes para avisar o anfitrião de que o desembargador seria o substituto de Celso de Mello.
O encontro foi articulado por Davi Alcolumbre, presidente do Senado, a Casa responsável por aprovar os nomes indicados ao Supremo. Também estavam presentes à reunião na residência de Mendes o ministro do STF Dias Toffoli e o ministro das Comunicações, Fábio Faria. Participantes do encontro disseram a VEJA que Marques já estava muito bem avaliado para envergar a toga no Supremo. O curioso é que sua pretensão inicial era ser promovido para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Sua conversa fácil e a impressão que passou de ter um compromisso firme com o conservadorismo agradaram ao presidente da República. “Depois de indicado, ele vai apanhar por dez dias. Vamos ver se com essa pancadaria dá para segurar ou não”, conta um ministro que acompanhou de perto as negociações. A pancadaria, claro, começou. No dia seguinte, aliados de Bolsonaro fizeram chegar ao presidente um dossiê — acompanhado do aviso “é importante você saber” — com supostas informações desabonadoras sobre o desembargador.
O papelório fala de sua relação pessoal com o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, e lembra que Marques foi indicado ao TRF pela então presidente Dilma. Sua bandeira, portanto, seria vermelha. Afeito a teorias da conspiração e expert em encontrar inimigos imaginários, Bolsonaro, desta vez, não deu trela ao serpentário palaciano. O motivo é simples: a pancadaria, leve e acima da linha da cintura por enquanto, foi devidamente abafada pelas manifestações de apoio ao desembargador. Além do aval da dupla Mendes e Toffoli, Marques foi festejado pelo chamado Centrão, o bloco de partidos conhecido por oferecer apoio ao presidente da vez, em troca de cargos e outras benesses — nem sempre republicanas. Desse imenso balaio fazem parte os evangélicos do Republicanos, defensores ardorosos de pautas conservadoras, e os mensaleiros do PL. O senador Ciro Nogueira, mandachuva do Progressistas, o partido com mais políticos investigados na Operação Lava-Jato, até festejou numa rede social a possibilidade de Marques assumir o Supremo.
Nogueira e outros governistas defendiam a tese de que, se o desembargador, egresso da advocacia do Piauí, fosse indicado, o presidente faria mais um aceno ao Nordeste e, assim, daria mais um passo rumo à reeleição. Na verdade, a comemoração se deu por outras razões. O Centrão gostou especialmente de saber que Marques não é um lava-jatista. Pelo contrário, ele é um garantista e, portanto, alguém talhado para cerrar fileiras contra aquilo que os críticos chamam de arbitrariedades cometidas pela força-tarefa da Lava-Jato. “O presidente não iria colocar um lava-jatista. Se fosse esse o critério, ele escolheria o Marcelo Bretas”, afirma um auxiliar de Bolsonaro, referindo-se ao juiz da Lava-Jato no Rio de Janeiro (veja reportagem na pág. 36). “Os senadores todos estão eufóricos. Todo mundo gostou do nome. O presidente quis agradar à política e ao Supremo”.
Um ministro do Supremo já é, naturalmente, bastante poderoso. Mas o poder do indicado de Bolsonaro será imenso. Ele pode, inclusive, influenciar indiretamente o resultado das próximas eleições presidenciais. O substituto de Celso de Mello vai assumir uma vaga na Segunda Turma do STF e ser o voto de desempate em vários processos ligados à Lava-Jato, incluindo um muito relevante: o que decidirá se o ex-juiz Sergio Moro agiu com parcialidade ao condenar o ex-presidente Lula no processo do tríplex do Guarujá. Essa ação desperta um imenso interesse em Bolsonaro, que dorme, acorda e respira pensando em 2022. Uma eventual decisão favorável a Lula levaria à anulação da condenação imposta ao petista e poderia garantir sua reabilitação, ainda que temporária, para disputar cargos eletivos. “Ter o Lula como adversário não seria uma má ideia. A eleição seria novamente polarizada e a gente ganharia com mais facilidade do que em 2018”, diz um ministro do governo. Portanto, uma decisão contrária a Moro, um rival mais temido por Bolsonaro do que Lula, é um cenário bastante provável.
Ao procurar um conservador para a sua primeira indicação ao Supremo, Bolsonaro, de certa forma, emula mais uma vez o presidente americano Donald Trump. Para substituir na Suprema Corte a juíza Ruth Bader Ginsburg, ícone da luta pelos direitos das minorias, morta recentemente, Trump indicou a juíza ultraconservadora Amy Coney Barrett. “A Suprema Corte vai decidir a sobrevivência da Segunda Emenda, que garante o direito de ter armas, nossa liberdade religiosa, nossa segurança pública e muito mais”, afirmou Trump. “Não há ninguém melhor para fazer isso que Amy Coney Barrett”. A Corte americana é formada por nove juízes com mandato vitalício. Com a indicação de Barrett, alvo de protestos do Partido Democrata por ter ocorrido às vésperas das eleições presidenciais de novembro, os conservadores ampliarão sua maioria. Como bom discípulo, Bolsonaro quer replicar a lição aqui. Segundo Rubens Glezer, professor da escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, o mandatário brasileiro tem mais chance de influenciar a balança da justiça com a sua indicação do que o seu colega americano, já que a cultura jurídica dos Estados Unidos respeita mais a jurisprudência, as decisões anteriores.
Por lá, o juiz leva mais em conta os julgamentos realizados do que a sua própria consciência. Já o magistrado brasileiro, explica Glezer, julga na maioria das vezes de acordo com seus princípios, sem necessariamente pesar as consequências de sua decisão sobre a estabilidade jurídica. Transportando essa tendência para o STF, ele acrescenta que no Brasil cada ministro, quando assume a função de relator de um processo, passa a se sentir dono dele e no direito até de impedir que o plenário reveja suas decisões monocráticas. Ou seja: em tese, Kassio Marques pode ajudar, de uma forma mais proativa, a implantar uma pauta de interesses do presidente. “Daí, a escolha de Bolsonaro ter muito mais peso institucional e cultural sobre a nossa sociedade que a do presidente Donald Trump.”
Como se sabe, não são apenas as decisões do Supremo no campo dos costumes ou da Lava-Jato que desagradam a Bolsonaro. Conforme retratado em inúmeras reportagens recentes de VEJA, o presidente se queixa de despachos e manifestações dos ministros da Corte que teriam, segundo ele, motivação meramente política. Quando está de bom humor, Bolsonaro alega que o STF usurpa sua competência. Quando acorda em modo radical, exagera e acha que a Corte quer derrubá-lo. Daí a decisão de ter indicado alguém considerado de sua extrema confiança. Alguém, como ele mesmo disse, com quem possa tomar cerveja no fim de semana.
É da tradição política brasileira que o padrinho espere gratidão e retribuição do afilhado. Em bom português: quem indica o ministro do Supremo espera ser favorecido ou protegido por ele. A história, felizmente, mostra que o sistema nem sempre funciona assim. Ministros indicados pelo PT votaram pela condenação de expoentes do partido no processo do mensalão. Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Roberto Barroso, para citar alguns, não ficaram alinhados com o PT ou petistas após a nomeação. Ao contrário, foram bastante duros com o partido que os colocou lá. “O cargo é vitalício, e a biografia do sujeito é que passa a pesar, não quem o indicou”, afirma Ricardo Ismael, cientista político e professor da PUC-Rio. Na ditadura militar, o então ministro do Supremo Victor Nunes Leal já falava da frustração dos presidentes ao verem seus indicados alçar voo próprio depois de empossados na Corte. “Raro é o governante que não se decepcionou, ao escolher pessoas respeitáveis e honradas, com a expectativa de serem seus porta-vozes no tribunal”, declarou, diante da intenção do governo do marechal Castello Branco de redesenhar a composição da Corte, ampliando o número de assentos por meio de um Ato Institucional.
Se for mesmo confirmado como ministro do STF na sabatina a que será submetido no Senado, o desembargador Kassio Nunes Marques, hoje desconhecido, entrará certamente para o rol de celebridades nacionais. Como lembra o colunista Alon Feuerwerker no texto ao lado, os brasileiros hoje já não sabem quem são os onze titulares da seleção brasileira, mas conhecem um por um dos onze juízes da mais alta Corte do país. Barroso, por exemplo, é aplaudido em voos e restaurantes. Gilmar Mendes, que toma posições corajosas contra a opinião pública, às vezes é vaiado injustamente em suas andanças por Lisboa, onde tem casa. Ele não liga. Independentemente da posição que venha a tomar sobre aborto, drogas, homofobia, Lava-Jato ou eleições, Kassio Marques não passará despercebido nem ignorado. Ele atuará diretamente — e ajudará a escrever — na história do Brasil. Que o desembargador entenda essa imensa responsabilidade e corresponda à grandeza da missão.