Críticas de ex-porta-voz a Bolsonaro reflete insatisfação militar
Foto: Isac nobrega/pr
Recém-exonerado pelo presidente Jair Bolsonaro, depois de ficar quase o ano inteiro sem promover as tradicionais coletivas de imprensa diárias no Palácio do Planalto, o general Otávio Rêgo Barros, ex-porta-voz da Presidência, voltou a ser o centro das atenções em Brasília. E em um ponto delicado: a atuação dos militares na agenda política nacional.
Em artigo publicado no Correio na última terça-feira, o general discorre sobre políticos que descumprem compromissos de campanha e se inebriam com os encantos do poder. Em analogia com a Roma antiga, Rêgo Barros critica também assessores que, por receio de contrariar o líder e por ambições pessoais, abrem mão da “discordância leal”, elemento essencial no bom funcionamento de um governo.
A mensagem de Rêgo Barros foi elogiada nos meios militares e, embora seja lida como um recado direto ao presidente Jair Bolsonaro, não foi vista com deslealdade. O objetivo, avaliam amigos do general, jamais foi criar celeuma. E sim alertar sobre o perigo de não se dar espaço ao que ele chama de “discordância leal”. É isso que hoje mais incomoda grande parte dos generais e de antigos apoiadores do presidente, que, diante dos novos amigos do Centrão, deixa de lado aqueles que o ajudaram a chegar ao Planalto e apostaram num projeto.
“Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal”, escreveu o general no artigo Memento mori.
Rêgo Barros, que foi porta-voz da Presidência, mas acabou isolado após um tempo, traduziu no artigo o sentimento que perpassa os militares, de que hoje o presidente confunde discordância leal com oposição e de que é preciso ter clareza de que nem toda discordância é deslealdade.
O artigo, aliás, fez com que muitos saíssem da “toca”, em solidariedade ao general. Alguns, inclusive, que se veem hoje quase que atirados à oposição, embora não tenham essa intenção. “Barbara Tuchman tinha razão: ‘A Marcha da Insensatez’ parece se repetir. Toda a minha solidariedade ao General Rêgo Barros pela atitude. Leitura precisa de um sombrio cenário. O mesmo cenário já repudiado por General Santos Cruz, Sergio Moro e outros atentos defensores da moralidade”, escreveu em seu Twitter o general Francisco Mamede de Brito Filho, que já atuou como chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Nordeste, numa referência aos ex-ministros de Bolsonaro e à historiadora, jornalista e escritora estadunidense, ganhadora de dois prêmios Pulitzer.
O que o general Brito menciona de público corre a caserna nas conversas reservadas. O artigo Memento mori vale para todos aqueles que, ao alcançar o coração do poder, deixam de lado os projetos pactuados com eleitor, sem levar em conta a próxima eleição e que é preciso manter a conexão com a realidade e não apenas com a bolha de seguidores nas redes sociais.
Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno disse ao Correio que Rêgo Barros “tem o direito de falar o que ele quiser”. “Para mim, não significa nada. Para o governo ou para alguém, pode significar. É um direito dele. Ele é um cidadão, paga imposto, vota. Então, é direito dele falar o que ele quiser”, declarou.
Em entrevista ao jornal O Globo, o general da reserva Paulo Chagas disse que foi “oportuno” o posicionamento do ex-porta-voz. “Todos nós acreditamos no lema do Brasil acima de tudo. Então, é preciso provar que vai mesmo ser o Brasil acima de tudo. Os compromissos de campanha precisam ser seguidos.”
O artigo de Rêgo Barros vem na sequência de episódios constrangedores envolvendo generais que estão no governo Bolsonaro. Na semana passada, o titular do Ministério da Saúde, Eduardo Pazuello, foi desautorizado publicamente pelo chefe, que cancelou a aquisição de 46 milhões de doses da vacina chinesa CoronaVac. Após o cancelamento, o ministro disse, simplesmente, que “um manda, o outro obedece”.
A resposta de Pazuello rendeu um tuíte do general Santos Cruz, ex-titular da Secretaria de Governo. “Hierarquia e disciplina, na vida militar e civil, são princípios nobres. Não significam subserviência nem podem ser resumidos a uma coisa ‘simples assim, como um manda e o outro obedece’… Como mandar varrer a entrada do quartel”, escreveu ele, que deixou o governo após passar por um processo de fritura.
Também na última semana, outro militar alvo de ataques foi o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. Ele entrou em atrito com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Como resposta, Salles pediu ao general para deixar de lado a “postura de #MariaFofoca”. A provocação do titular do Meio Ambiente teve apoio da ala ideológica do governo e de filhos de Bolsonaro.
O deputado Otoni de Paula (PSC-RJ), ex-vice-líder do governo na Câmara, contestou as afirmações do general. “Otávio Rêgo Barros, ex-porta-voz da Presidência da República, disse que os auxiliares do presidente são ‘seguidores subservientes’. Rêgo está confundindo subserviência com lealdade. A todo momento o presidente Jair Bolsonaro ouve e pede conselhos, que relação de subserviência seria essa?”, questionou.
Leia trechos do artigo de Rêgo Barros
“É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.”
“Os assessores leais — escravos modernos — que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos. Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal.”
“Infelizmente, o poder inebria, corrompe e destrói! E se não há mais escravos discordantes leais a cochichar: ‘Lembra-te que és mortal’, a estabilidade política do império está sob risco.”
“As demais instituições dessa república — parte da tríade do poder — precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do ‘imperador imortal’.”
“A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — ‘Lembra-te da próxima eleição!’”