Forças Armadas mexicanizam combate ao crime no Brasil

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Foto: Daniel Becerril

O general Salvador Cienfuegos, ex-ministro da Defesa do México, foi preso pela Drug Enforcement Agency (DEA, a agência antidrogas americana) quando pisou nos Estados Unidos. O homem que dizia não ter estudado para perseguir delinquentes comandara a guerra às drogas do outro lado da fronteira entre 2012 e 2018, durante a gestão do presidente Enrique Peña Nieto. Ele estava nos EUA de férias com a família. Foi levado a uma prisão federal e terá seu caso analisado pela mesma Corte de Nova York que condenou Joaquín ‘El Chapo’ Guzmán, o chefe do cartel de Sinaloa.

A prisão de Cienfuegos parece acontecer em outro mundo, em um país em que o narcotráfico – como mostrou o sociólogo Luis Astorga – se organizou com o Estado, por meio do poder dos governadores, desenvolvendo-se com instituições que serviam de vínculo entre o poder político e os narcotraficantes de ópio e maconha, como a Dirección Federal de Seguridad (DFS). Polícia política do País, a DFS foi dissolvida depois de 40 anos de acusações de ligações de seus chefes com o crime organizado.

Tudo no México parece distante: nem os nossos bandidos seriam como os dos cartéis de lá nem os nossos militares agiriam como seus colegas de outros países latino-americanos. Tal pensamento se esquece que até o começo do ano um dos criminosos mais procurados do País tivera posto e patente: era o capitão Adriano Magalhães, líder da milícia Escritório do Crime. Oficiais do Exército lembram que o homem era policial. “PM é diferente”, dizem, como se a honestidade e a honra fossem atávicas do militar das Forças Armadas.

Nenhum avião americano sobrevoa a costa brasileira para interceptar comunicações de bandidos. Nem localiza esconderijos de narcotraficantes para que efetivos da Marinha ou do Exército os prendam. Nem o País foi dividido em regiões sob o comando de generais de divisão, que se tornam responsáveis pelo combate ao crime organizado. Antes que Cienfuegos fosse preso, foram militares desertores de uma unidade de operações especiais do Exército que criaram um dos mais sangrentos cartéis mexicanos: Los Zetas.

Heriberto Lazcano Lazcano, o líder dos Zetas, foi treinado por militares israelenses e americanos para combater a guerrilha de Chiapas, nos anos 1990. Da anomia da contrainsurgência ao vale-tudo do tráfico foi um pulo. No Brasil, o jornalista e cientista político Bruno Paes Manso mostra em seu livro A República das Milícias que o capitão Adriano e seus amigos que mataram a vereadora Marielle Franco também pensavam ter como missão varrer os esquerdistas da terra e levar ordem ao crime. No México, Lazcano afogou Tamaulipas em sangue na guerra contra o Cartel do Golfo. Acabaria morto como Adriano.

Não é alarmismo temer o risco de uma mexicanização do Brasil? Ou de uma repetição da Operação Mar Aberto, aquela da Polícia Federal que capturou um coronel da Força Aérea com 32 quilos de cocaína? Paes Manso mostra que as realidades parecem se imbricar e o crime a se aproximar da política com a instauração da máfia dentro do Estado. O problema aumenta ainda mais quando se analisa os papéis das Operações Overseas, Rei do Crime, Soldi Sporchi e Sharks, feitas pelas Polícias Federal e de Civil de São Paulo contra o Primeiro Comando da Capital (PCC).

De uma organização local, nascida atrás das grades com meia dúzia de membros, o PCC se transformou em 25 anos no primeiro cartel da droga do País, movimentando mais de R$ 1 bilhão com o tráfico internacional. Em guerra com o Comando Vermelho, ele se aliou ao Terceiro Comando Puro (TCP), no Rio, a mesma facção que se aproximou das milícias do capitão Adriano. Hoje o grupo atua nas Américas, na África e na Europa. Seu esquema de lavagem de dinheiro envolve o mesmo caminho dos dólares da corrupção; a facção passou a se apropriar de empresas e contratos públicos e a financiar políticos. Seus líderes sonham em conquistar os Estados Unidos, emulando os colegas colombianos e mexicanos.

Já os militares brasileiros se esforçam há décadas para não repetirem o destino dos colegas latino-americanos. Primeiro, lutaram para que oficiais como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra morressem sem ir para cadeia em razão dos assassinatos e torturas da guerra em que pensavam lutar contra a oposição política, atingindo desde as organizações da luta armada até grupos que defendiam a resistência democrática, como o PCB. Na vizinha argentina, o general Jorge Rafael Videla terminou seus dias na cadeia pelos crimes da ditadura depois que seus companheiros foram incapazes de defender o País contra uma nação estrangeira no conflito das Malvinas, em 1982.

A manutenção da ordem interna e o envolvimento dos militares em ações sem nenhuma relação com a defesa nacional produziriam outros desastres na América Latina. Na Colômbia da guerra às drogas e do conflito contra as guerrilhas esquerdistas, dezenas de militares foram acusados de matar jovens pobres no escândalo dos “falsos positivos”. Segundo contou o coronel Gabriel de Jesús Rincón, eles atraíam suas vítimas – a maioria camponesa – para armadilhas e as matavam como se fosse em combate. “Mortes em combate” rendiam aos militares recompensas que incluíam medalhas, dias de folga, anotações elogiosas no currículo ou promoções.

“Meu maior amigo no curso foi preso no meio da aula”, contou à coluna um coronel brasileiro da Engenharia, parte da missão de desminagem na Colômbia. Ele estava na Escola de Estado-Maior daquele país quando testemunhou a detenção do major, que acabou condenado. Restou ao brasileiro o embaraço diante de uma realidade que parecia incômoda: guerrilheiros perdoados em um processo de paz enquanto militares iam para a prisão. O fato não devia, porém, causar perplexidade. Os interesses do Estado não se confundem com os de uma facção, mas estão na capacidade de a sociedade preservá-los como instrumento do bem comum na República.

Nesta década, a presença de militares brasileiros no combate ao crime cresceu ao menos três vezes, comparada aos anos 1990. Desde a Operação Rio-92 até o fim deste ano foram quase 200 ações de garantia de lei e ordem no País. Já em 2017, o então comandante do Exército, general Villas Bôas, tuitara: “Preocupa-me o constante emprego do Exército em ‘intervenções’ (GLO) nos Estados. A segurança pública precisa ser tratada pelos Estados com prioridade ‘zero’.”

Dois meses depois, o País assistiu à intervenção no Rio e até a revistas em presídios feitas por militares do Exército. Não é só os riscos da contaminação das Forças Armadas e do envolvimento de seus homens com a corrupção e as violações aos direitos humanos ligadas à estratégia de se tratar a segurança pública como uma guerra que deviam preocupar os militares. Há outra consequência grave quando a intervenção militar se torna regra na luta contra o narcotráfico: o desequilíbrio que se cria entre o Poder Civil e o Militar. O que já era um risco antes da adesão de parte do generalato ao governo de Jair Bolsonaro pode assumir contornos mais preocupantes.

O exemplo mexicano mostra que o emprego do Exército como consequência da ineficiência e da corrupção das autoridades policiais é um remédio ruim, pois ele se torna um obstáculo à evolução normal das estruturas civis do Estado, além de dotar os militares de um poder que pode debilitar todo o processo democrático ou levar à desmoralização das instituições armadas. Foi assim que a prisão de Cienfuegos fez o México discutir o uso das Forças Armadas na guerra contra as drogas e o fortalecimento da Guarda Nacional, como mostra o debate coordenado pelo professor Sergio Aguayo, na semana passada, no Colégio do México.

No Brasil, faz quatro meses que Jair Bolsonaro e os ministro Braga Netto (Casa Civil), Jorge Oliveira (Secretária-Geral) e André Mendonça (Justiça) assistiram a uma apresentação do delegado Elvis Secco, coordenador-geral de Repressão a Drogas da PF sobre o tamanho do problema. Podiam ainda ler o trabalho do major Pedro Augusto Porto, na Escola de Comando e Estado Maior (Eceme), sobre o caso mexicano. Eis sua conclusão sobre o uso do Exército – aqui como lá – na “segurança interna”: “O emprego em atividades contra a criminalidade desvia o foco do treinamento ou emprego em outras áreas, como a da defesa externa”.

Mesmo assim, o governo sobrecarrega ainda mais os militares com atividades que vão do controle de queimadas ao combate ao contrabando, ao garimpo ilegal e ao tráfico de drogas e armas. O País mobiliza soldados em vez de fortalecer agências que cuidem da ordem pública e do combate à lavagem do dinheiro. Pior: questiona-se o trabalho de auditores da Receita no Planalto em nome da defesa de Flávio Bolsonaro. E, assim, aos poucos, caminha-se sem deter o crime organizado. Pouco importa se no México os militares discutem se Cienfuegos foi um traidor ou traído por amigos. Sua queda deve ser um alerta para que no Brasil nenhum capitão Adriano chegue a general.

Estadão