Para juristas, furos no currículo de Kássio ensejam questionamentos

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Foto: Dida Sampaio/Estadão

As inconsistências encontradas no currículo do desembargador federal Kassio Marques, indicado do presidente Jair Bolsonaro à vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF), levantaram questionamentos sobre a possibilidade de sua nomeação ao cargo. A dúvida é se as informações não confirmadas no currículo do indicado ferem a exigência de “reputação ilibada”, estabelecida pela Constituição Federal para ministros do Supremo.

O currículo acadêmico apresentado pelo indicado do presidente ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1), e publicado no site da Corte, menciona uma pós-graduação em “Contratación Pública”, pela Universidad de La Coruña. No entanto, como mostrou reportagem do Estadão, a instituição espanhola negou oferecer o curso informado por Marques em seu currículo e informou que ele foi aluno apenas de um curso com duração de cinco dias, em 2014.

O artigo 101 da Constituição determina a composição do STF. Além de estabelecer que a Corte deve ter 11 ministros, escolhidos entre cidadãos de 35 a 65 anos com “notável saber jurídico”, o texto acrescenta a exigência de “reputação ilibada”.

Para a advogada constitucionalista Vera Chemin, mestre em direito administrativo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), as inconsistências no currículo apresentado por Kassio Marques abrem uma brecha para questionamentos jurídicos sobre sua eventual nomeação. O indicado precisa passar por sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e por votação no plenário, onde é necessário o apoio de 41 dos 81 senadores.

“Se levarmos ao pé da letra, rigorosamente, eu considero que as inconsistências remetem ao dispositivo constitucional. Ele colocou uma declaração falsa no currículo, que é um documento particular que serve para aferir o notório saber jurídico do indicado. Esse fundamento, do ponto de vista jurídico, por si só, pode vir a ser procedente”, disse Chemin.

Além da questão curricular, a advogada considera que a peregrinação do desembargador em busca de apoio no Senado também configura motivo para ação judicial questionando a nomeação. “Do ponto de vista político, diante de todo o aparato que se construiu em torno da figura do futuro ministro, com ministros do Supremo apoiando a indicação, com o próprio indicado pedindo apoio aos senadores – o que não poderia ocorrer – combinado com a questão do currículo, serve de argumento para um questionamento judicial.”

A análise da diretora da Escola Superior de Advocacia da OAB no Rio de Janeiro, Thaís Marçal, é divergente. Para ela, os possíveis erros no currículo do desembargador não seriam, por si só, motivo suficiente para motivar um questionamento por via jurídica. A advogada afirma que outros fatores devem ser considerados para que essa análise seja precisa.

“É importante avaliar toda a trajetória da pessoa antes de se falar em hipótese de afastamento da reputação ilibada, como prevê o texto constitucional. Não me parece que as questões envolvendo o currículo do desembargador sejam suficientes para isso. Parece-me que a trajetória do desembargador já demonstra o saber jurídico e também a reputação”, afirmou.

No mesmo sentido, o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Floriano Marques, defende que levar a questão a julgamento judicial seria impróprio. “Não dá para o Judiciário fazer crivo prévio a um processo de indicação institucional. Isso seria colocar a nomeação de ministro do STF na mão dos juízes”, declarou Marques.

Apesar de se dizer contrário à judicialização do caso, o professor ponderou que o fato deve ser avaliado pelo Senado Federal. “O crivo pelo Senado não é o mesmo que numa ação judicial. Quem tem que fazer este escrutínio forte e profundo são os senadores sob a luz da opinião pública.”

A avaliação pelo Senado, inclusive, é um ponto de convergência entre os juristas. Apesar disso, Vera Chemin chama a atenção para o fato de que as sabatinas pela Casa Legislativa, em geral, são um ato meramente protocolar. “Caso a minoria viesse a se opor e tivesse votos suficientes, o que, a princípio, não creio, seria a primeira vez que o Senado exerceria efetivamente a sua função de avaliar um indicado.”

Marques chegou a se justificar para senadores dizendo que houve um “erro” na tradução do título do curso. O “postgrado” seria, na sua visão, um tipo de especialização sem paralelo com a pós-graduação nos moldes brasileiros. O termo usado, contudo, tem o sentido de pós-graduação, nos mesmos moldes definidos pelo entendimento no Brasil ou no exterior. A duração mínima, segundo sites especializados em ensino superior na Espanha, é de seis meses.

O currículo de Marques cita também dois cursos de pós-graduação feitos na Universidade de Salamanca, na Espanha: o primeiro, um doutorado em Direito, com especialização em Administração, Fazenda e Justiça; o segundo, um pós-doutorado em Direitos Humanos. Questionada pela reportagem, a universidade afirmou que as informações públicas de alunos estão disponíveis no site da instituição. O doutorado aparece, de fato, na página da universidade – com um detalhe: a tese foi defendida há apenas 11 dias, em 25 de setembro. O pós-doutorado em Direitos Humanos, no entanto, não consta no banco de dados públicos da Universidade de Salamanca.

Mais um curso de pós-doutorado consta no currículo de Kassio Marques, o de Direito Constitucional, pela Universidade de Messina (Universitá Degli Studi di Messina), na Itália. Questionada pela reportagem há quatro dias, a universidade ainda não respondeu sobre a atuação do desembargador neste curso.

Chama ainda a atenção o fato de Kassio Marques, com 48 anos de idade, ter concluído o doutorado apenas 11 dias atrás e já possuir dois pós-doutorados consumados em sua carreira acadêmica. O desembargador também não faz uso de um instrumento regularmente utilizado para comprovar a experiência acadêmica, o currículo Lattes, ferramenta básica usada para atestar, com detalhes, a formação e vida acadêmica.

Estadão