Substituto de Celso de Mello enfrentará desafio
Foto: Jorge William / Agência O Globo
Nas últimas três décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu grande parcela de contribuição para garantir os direitos de minorias e das liberdades — sejam elas científicas, religiosas, de expressão ou de imprensa. Todas essas decisões foram construídas com o voto do ministro Celso de Mello, o mais antigo da Corte, que tem aposentadoria agendada para o dia 13, depois de ocupar a cadeira por 31 anos.
Para o lugar do decano, o presidente Jair Bolsonaro indicou o desembargador federal Kassio Marques. Se for aprovado pelos senadores, após sabatina, Marques ainda terá pela frente o desafio de substituir um dos ministros mais respeitados pelos colegas.
Como relator, destaca-se a atuação de Celso de Mello no julgamento que em 2019 definiu como crimes a homofobia e a transfobia e no que decidiu pela liberdade de expressão no processo sobre a Marcha da Maconha, em 2011.
O conjunto dos julgamentos do Supremo, porém, mostra que o decano tem poder de persuasão e influência na Corte, mesmo quando não é o relator do processo. Se hoje o decano costuma votar com a maioria, nos primeiros anos de Supremo ele era voto vencido.
No fim dos anos 1980 e início dos 1990, Celso de Mello era uma espécie de homem à frente do seu tempo. Em 1997, deu entrevista defendendo que o traficante de drogas seja punido, mas o usuário, não. Apenas em 2006 a Lei de Drogas fez a diferença entre traficante e usuário.
— A punição pelo tráfico de drogas deve ser intensa e grave. É um delito que ofende de modo profundo a estabilidade das relações sociais. No entanto, acho questionável a punição penal do consumidor. Muito mais do que um agente criminoso, ele me parece uma vítima. O consumidor deve merecer atenção, tratamento, não uma reação repressiva — disse, na ocasião.
No leque de decisões em defesa dos direitos das minorias, Celso de Mello sempre contribuiu com votos marcantes. Em 2003, uma decisão quebrou os paradigmas praticados até então na Corte ao definir que o antissemitismo deveria ser punido como racismo.
“Nem gentios, nem judeus; nem patrícios, nem plebeus. Sem qualquer hierarquia ou distinção de origem, de raça, de orientação confessional ou de fortuna, somos todos pessoas, essencialmente dotadas de igual dignidade e impregnadas de razão e consciência, identificadas pelo vínculo comum que nos projeta, em unidade solidária, na dimensão incindível do gênero humano”, disse, em seu voto.
O entendimento de 2003 abriu espaço para a decisão do plenário que comparou a homofobia e a transfobia ao racismo no ano passado.
“A homofobia representa uma forma contemporânea de racismo. A aversão a integrantes do grupo LGBT, um grupo vulnerável, constitui a manifestação cruel, ofensiva e intolerante do racismo, por representarem sua outra face, o racismo social”, votou o decano.
Antes disso, em 2011, o plenário do STF já havia tomado decisão vanguardista para a população LGBTI, ao legalizar as uniões homoafetivas. Com o voto de Celso de Mello.
As minorias sempre estiveram no radar do decano. Foi assim quando votou nas ações afirmativas de cunho racial, em 2012 e 2017; pela obrigatoriedade do ensino inclusivo para crianças com deficiência, em 2015; na titulação de terras ocupadas por quilombolas; e a favor da alteração do registro civil de transexuais sem necessidade de cirurgia de mudança de sexo, em 2018.
Nas decisões sobre liberdades, ganha destaque o julgamento de 2009 que definiu a Lei de Imprensa como incompatível com a Constituição Federal de 1988.
Nada mais nocivo, nada mais perigoso do que a pretensão do Estado de regular a liberdade de expressão, pois o pensamento há de ser livre — permanentemente livre, essencialmente livre, sempre livre. Torna-se extremamente importante reconhecer, desde logo, que, sob a égide da vigente Constituição da República, intensificou-se, em face de seu inquestionável sentido de fundamentalidade, a liberdade de informação e de manifestação do pensamento”, votou.
O decano se notabilizou na defesa da liberdade científica quando, em 2007, permitiu, junto com a maioria do plenário, as pesquisas com células-tronco embrionárias. Ainda no campo das liberdades, Celso de Mello votou, em 2017, contra o ensino religioso em escolas públicas. Destacou o direito das minorias de outras religiões, ou mesmo de agnósticos e ateus, de não serem submetidos ao ensino confessional de uma religião diferente de suas convicções. Ao defender as liberdades, Celso de Mello muitas vezes criticou regimes autoritários, especialmente a ditadura militar instalada em 1964.