Surge suspeita de plágio contra indicado ao STF
Foto: Divulgação/TRF1
A dissertação de mestrado defendida pelo desembargador Kassio Marques, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), tem pelo menos três trechos idênticos a artigos escritos por um outro autor, Saul Tourinho Leal, sobre o mesmo tema, o direito à saúde. Os documentos obtidos pelo GLOBO apontam suspeitas de plágio, porque não houve citação bibliográfica ao outro autor na dissertação de Kassio Marques.
Até mesmo um erro de grafia no nome do país Namíbia, escrito “Naníbia” no artigo de Saul Tourinho Leal, repetiu-se na dissertação de mestrado de Marques.
Indicado por Bolsonaro com o apoio do Centrão, o nome de Marques ainda precisa do aval do Senado para ser nomeado à vaga de ministro aberta pela aposentadoria de Celso de Mello. Sua sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado foi marcada para o dia 21 de outubro.
A dissertação de mestrado de Marques foi defendida em 2015 junto à Universidade Autônoma de Lisboa, sob o título: “Concretização Judicial do Direito à Saúde: um contributo à sua efetivação no Brasil a partir das experiências jurisprudenciais no Direito Comparado e nas matrizes teóricas portuguesas”.
Em suas 128 páginas, há trechos idênticos aos artigos “Direito à Saúde: cidadania constitucional e reação judicial” e “O princípio da busca da felicidade e o direito à saúde”, ambos publicados em 2011 por Saul Tourinho Leal, que atualmente é doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e advogado no escritório do ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto.
Nas propriedades do arquivo eletrônico da dissertação de Kassio, consta como autor do documento o nome “Saul”, como mostrou a revista “Crusoé”. O advogado Saul Tourinho Leal foi procurado na manhã desta quarta-feira, mas afirmou que estava em reuniões e não retornou ao contato da reportagem.
Um desses trechos envolve uma análise sobre os direitos à saúde na Constituição da Irlanda e a da Namíbia.
Diz o artigo de Saul Tourinho Leal: “A Constituição Irlandesa de 1937, no art. 45, voltado aos direitos sociais, diz que ‘os princípios de política social pretendem ser para a orientação geral do Oireachtas [Legislativo Irlandês]. A aplicação desses princípios na elaboração das leis deve ser tarefa do Oireachtas exclusivamente, e não deve ser cogniscível por nenhuma Corte sob qualquer das disposições desta Constituição’ [53]. Percebam que nesse país o Judiciário se afasta do debate da saúde em razão de uma imposição constitucional. O art. 101 da Constituição da Naníbia diz que ‘os princípios da política de estado contidos neste Capítulo não devem ser, por si sós, exigíveis legalmente por qualquer Corte, mas deve, entretanto, guiar o governo na elaboração e aplicação das leis para dar eficácia aos objetivos fundamentais dos referidos princípios'”.
O mesmo trecho aparece em termos quase idênticos na dissertação de Kassio Marques, inclusive com erro de grafia no nome da Namíbia: “A Constituição Irlandesa de 1937, no art. 45, voltado aos direitos sociais, diz que ‘os princípios de política social pretendem ser para a orientação geral do Oireachtas [Legislativo Irlandês]. A aplicação desses princípios na elaboração das leis deve ser tarefa do Oireachtas exclusivamente, e não deve ser cogniscível por nenhuma Corte sob qualquer das disposições desta Constituição’. O Judiciário se afasta do debate da saúde em razão da imposição constitucional. Por sua vez, p art. 101 da Constituição da Naníbia diz que ‘os princípios da política de estado contidos neste Capítulo não devem ser, por si sós, exigíveis legalmente por qualquer Corte, mas deve, entretanto, guiar o governo na elaboração e aplicação das leis para dar eficácia aos objetivos fundamentais dos referidos princípios'”.
Em outro trecho de seu artigo, Saul Leal relata decisões judiciais da Colômbia. “Ainda dentro da realidade colombiana, temos a Sentença T-533, de 1992. No caso, um indigente requereu uma cirurgia que evitaria a cegueira. Segundo a Corte, seria hipótese de o direito à saúde adquirir o caráter de fundamental, posto que ‘as conseqüências, de maneira imediata, se revelam como contrárias à ordem constitucional, a qual protege a vida e a integridade física das pessoas’ [45]. A Corte entendeu que ‘acreditado o caráter de indigente absoluto – (i) incapacidade absoluta de pessoa de valer-se por seus próprios meios; (ii) existência de uma necessidade vital cuja não satisfação lesiona a dignidade humana em máximo grau; (iii) ausência material de apoio familiar – cabe reconhecer à frente do sujeito e a cargo da entidade pública respectiva, o direito a receber a prestação correspondente, estabelecendo – à luz das circunstâncias – as cargas retributivas a seu cargo (…)’ [46]. Na sentença T-484, de 1992, a Corte Constitucional colombiana definiu que o direito à saúde, em sua natureza jurídica, contempla um conjunto de elementos que podem agrupar-se em dois grandes blocos”.
Marques reproduz esse trecho em termos semelhantes, sem nenhuma referência bibliográfica: “A Sentença T-533/92 mostra um indigente que requereu uma cirurgia para não ficar cego. Segundo a Corte, seria hipótese de o direito à saúde adquirir o caráter de fundamental, posto que as conseqüências, de maneira imediata, se revelam como contrário à Constituição, a qual protege a vida e a integridade física das pessoas. A Corte entendeu que ‘acreditado o caráter de indigente absoluto – (i) incapacidade absoluta de pessoa de valer-se por seus próprios meios; (ii) existência de uma necessidade vital cuja não satisfação lesiona a dignidade humana em máximo grau; (iii) ausência material de apoio familiar – cabe reconhecer à frente do sujeito e a cargo da entidade pública respectiva, o direito a receber a prestação correspondente, estabelecendo – à luz das circunstâncias – as cargas retributivas a seu cargo (…)’177. Na sentença T-484/92, a Corte Constitucional definiu que o direito à saúde, em sua natureza jurídica, contempla um conjunto de elementos que podem agrupar-se em dois grandes blocos”.
Ao discorrer sobre essa jurisprudência colombiana, Kassio Marques considera ser “interessante” o mesmo ponto que Saul Leal também havia considerado “interessante”.
Saul escreveu a seguinte análise: “Mas é interessante notar a relevância que a Corte Constitucional colombiana confere para a dor, para o sofrimento e para a iminência da morte. Uma senhora sofria de uma lesão na coluna vertebral e necessitava de cirurgia. Com a demora na prestação do serviço e com a dor que a impedia, inclusive de subir e descer escadas, ela ajuizou ação pleiteando a realização da cirurgia. Segundo a Corte Constitucional, quando uma entidade se nega a prestar um serviço requerido por uma pessoa para eliminar, ou ao menos mitigar, as dores e sofrimentos que são produzidas por uma enfermidade, ela submete a pessoa a tratamentos cruéis e desumanos [48]”.
Marques a reproduziu nos seguintes termos: “Interessante notar a relevância que a Corte Constitucional colombiana confere para a dor, para o sofrimento e para a iminência da morte. Uma senhora sofria de lesão na coluna vertebral e deveria sofrer um procedimento cirúrgico. Ante a delonga na prestação do serviço e à dor que a impedia de subir e descer escadas, interpôs uma ação de tutela com o objetivo de que se ordenasse a operação. A Corte Constitucional precisou que, quando uma entidade se nega a prestar um serviço que requer uma pessoa, para eliminar, ou ao menos mitigar, as dores e sofrimentos que são produzidas por uma enfermidade, submete a pessoa a tratamentos cruéis e desumanos”.
Procurada às 9h47 desta quarta-feira, a assessoria de imprensa de Kassio Marques ainda não se manifestou sobre o assunto.