Juiz da Operação Mãos Limpas não vê provas contra Lula

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Foto: Felipe Rau/AE

Em um dado momento, o fardo se tornou insuportável. “Dia sim, dia não, infligir 20 anos de prisão era uma coisa que me atormentava”, diz o ex-juiz italiano Gherardo Colombo, de 73 anos, que, no fim da década de 1970, no início da carreira, julgava crimes de sequestro de pessoa no Tribunal de Milão. Foi quando começou a enfrentar as primeiras dúvidas morais sobre o sistema penal da Itália. A partir daí, iniciou um caminho, qualificado por ele de “processo de conversão”, que após 33 anos o levaria a abandonar a toga e se tornar um premiado ativista da educação à legalidade.

Incapaz de suportar o tormento interior de condenar uma pessoa a muitos anos de cadeia, Colombo pediu transferência e passou a atuar como juiz de instrução, tipo de magistrado que cuida da primeira fase do processo, colhe provas e decide se absolve ou transforma um acusado em réu. Era uma função que lhe permitia evitar decretar condenações.

“Enxergamos a resposta ao crime como vingança, com a certeza que uma pessoa que cometeu um crime não vai mudar nunca”

Em 1989, o magistrado passou a integrar a Procuradoria de Milão e conduziu investigações contra a Máfia e os crimes de colarinho branco. Em 1992, entrou para a força-tarefa da operação anticorrupção Mãos Limpas, que decapitou o alto escalão da política da Itália, e o transformaria em um dos juízes mais famosos e respeitados do país.

“O que eu fazia era muito pouco útil. [A Mãos Limpas] não foi o instrumento adequado para marginalizar a corrupção”, diz ele ao Valor em entrevista via Skype de sua casa em Milão. “Acabou a Mãos Limpas, mas não acabou a corrupção”, afirma.

Diante da insatisfação de seu trabalho como juiz, em 2007 Colombo largou a toga e fundou a associação Sulle regole (Sobre as regras), que se dedica a educar os jovens nas escolas. O ex-magistrado encontra 250 mil estudantes por ano e, por essa atividade, em 2008, recebeu o prêmio nacional Cultura da Paz. É ainda autor de 13 livros sobre o tema.

Valor: Depois de 33 anos como magistrado, o senhor tirou a toga e se tornou um ativista da educação à legalidade. Por quê?

Gherardo Colombo: Progressivamente, por meio da reflexão pessoal, leitura de livros e encontro com pessoas, cheguei à conclusão de que o que eu fazia era muito pouco útil. Para fazer com que as pessoas respeitem as regras, é preciso dialogar, confrontar, testemunhar. Quando as regras defendem os direitos fundamentais da pessoa, como estabelecido pela Constituição italiana e também a brasileira, observá-las é de nosso interesse. Geralmente as pessoas, não só os jovens, enxergam as regras como uma espécie de proibição ou mandamento, e sobretudo como sanção à transgressão. Se o entendimento é esse, é óbvio que ninguém ama as regras. Pelo contrário, as regras são indicações que mostram o caminho para alcançar o resultado.

Valor: Para o senhor, o único caminho é começar pelas escolas?

Colombo: Na minha opinião, sim.

Valor: Acaba de dizer que seu trabalho como magistrado foi muito pouco útil. O senhor foi um dos principais juízes da Mãos Limpas

Colombo: Acabou a Mãos Limpas, mas não acabou a corrupção.

Valor: A Itália está melhor ou pior so que há 30 anos?

Colombo: Mais ou menos igual em relação à difusão da corrupção. Algo mudou: antigamente a corrupção era muito vinculada ao caixa dois dos partidos. Hoje, acho que não é mais assim.

Valor: Hoje a corrupção está onde?

Colombo: Está em qualquer nível da sociedade. Desde o guarda municipal que faz compras grátis e em troca não controla a balança do açogueiro, o enfermeiro que por €200 avisa o serviço fúnebre que alguém morreu no hospital, o inspetor do trabalho que, em troca de propina, não fiscaliza a falta de capacetes e equipamentos de segurança no canteiro de obras.

Valor: Na época, a Mãos Limpas foi considerada também como revolução moral. Após quase 30 anos, qual é o legado da operação? Onde ela fracassou?

Colombo: Não foi o instrumento adequado para marginalizar a corrupção. Eu me demiti por isso também. Todas as minhas reflexões sobre a inutilidade do encarceramento dependem também daquela experiência. Por meio da repressão, você não consegue alterar a cultura. O objetivo é modificar a cultura, e isso se faz com outros instrumentos, sobretudo a educação nas escolas. No início da Mãos Limpas, todos eram felizes porque investigávamos a corrupção. Ao longo da investigação, muitos se tornaram inquietos. Quando surgiram crimes entre os cidadãos comuns, esses começaram a se perguntar: “O que [os investigadores] querem? Querem fiscalizar o que eu faço? Tirem isso da cabeça”. Ao mesmo tempo, o legislador, que respondia a uma cultura desse tipo, começou a alterar as normas: restringiu o crime de falsificação de balanço empresarial, o abuso de poder, reduziu pela metade o tempo da prescrição, e por aí vai. O resultado foi que as investigações não deram em nada, e a corrupção ficou.

Valor: O senhor acompanha a Lava-Jato desde o início. A operação brasileira segue um caminho parecido com o da Mãos Limpas? E qual a sua opinião sobre a operação?

Colombo: Existem diferenças consideráveis, não acredito que sejam comparáveis. O sistema processual brasileiro é muito diferente do sistema processual italiano. Por exemplo, o Código de Processo Penal da Itália não permite, diferentemente do que ocorre no Brasil, que quem acompanhou as investigações emita também a sentença de condenação, porque isso coloca fortemente em xeque a imparcialidade do juiz, não apenas por razões de caráter psicológico.

Valor: O senhor considera que os efeitos sobre a política foram parecidos?

Colombo: Eu diria que não. Na Itália a Mãos Limpas e as mudanças na política foram ambas uma consequência da queda do Muro de Berlim. Foi a representação simbólica da superação da divisão do mundo em dois blocos. A extinção da União Soviética desorientou os grupos de poder que, antes, impediam, de um modo ou de outro, que as investigações contra a corrupção chegassem ao fim.

Valor: Em fevereiro, o senhor encontrou um dos advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Christiano Zanin. Sobre o que os senhores conversaram?

Colombo: Nós nos vimos, sim. Tomamos um café, conversamos por um tempo e trocamos também alguns livros. Falamos sobretudo dos respectivos sistemas penais.

Valor: Qual é a sua ideia sobre as condenações do ex-presidente Lula?

Colombo: Não tenho conhecimento suficiente para poder dar uma impressão séria. Eu deveria ler os autos e a sentença que, se não me engano, têm centenas de páginas e nunca foram traduzidos para o italiano. Porém, os fatos que foram descobertos em seguida levantam interrogações.

Valor: O senhor se refere aos diálogos revelados pela “Vaza-Jato” entre o ex-juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol?

Colombo: Pela maneira que foram apresentados pela mídia, mas não só isso. O fato de Sergio Moro ter se colocado imediatamente à disposição para entrar no governo [de Jair Bolsonaro] pode levantar, pelo menos em aparência, questionamentos em relação à sua independência. Quero dizer que os juízes, além de serem, devem também parecer imparciais. Acredito que, para preservar a imagem de independência e imparcialidade, um juiz que quer entrar para a política deveria aguardar um tempo razoável depois que deixou a magistratura.

Valor: O senhor atualizou e republicou seu livro “O Perdão Responsável: Por que o Encarceramento não Serve para Nada” (em tradução livre). Como chegou a essa conclusão?

Colombo: A premissa é: quem é perigoso deve ficar em outro lugar e não deve ser colocado nas condições de machucar os outros. Mas atenção: esse outro lugar não se chamaria prisão. Seria um lugar onde são respeitados todos seus direitos que não conflitam com a segurança dos cidadãos, o direito ao espaço vital, à higiene, à educação, aos contatos humanos e à afetividade. Todas essas coisas, agora, na Itália – e acredito também no Brasil – não ocorrem. Esse lugar, que não podemos chamar de prisão, deveria ser dedicado à reinserção [do condenado] por meio de um percurso individualizado, que respeite as características da sua pessoa, para que ela possa se reinserir na sociedade e aprender que machucar os outros é prejudicial a ela também. A prisão não serve porque em 70% dos casos [na Itália], quem sai de lá comete novos crimes. É inútil para a segurança das pessoas e para reinserir a pessoa na sociedade. É uma conclusão pragmática e utilitarista. É só observar o que acontece. Por certos aspectos, piora até as coisas porque [a cadeia] é uma escola de criminalidade.

Valor: Uma sociedade sem prisões é realista? Há exemplos?

Colombo: No passado sem dúvidas. Na época dos longobardos [povo germânico que dominou a Itália entre os séculos VI e VIII] havia compensação monetária sobre os conflitos, entre um assassino e a família da vítima, por exemplo. A regra geral era a vingança, mas podia ser evitada se as pessoas compusessem o conflito por meio do reconhecimento do valor da pessoa morta, ressarcindo o homicídio em dinheiro. Na época atual, um exemplo é o sistema de Justiça restaurativa, a mediação entre o autor do crime e a vítima. Por meio de um percurso conduzido por um especialista se chega, no limite do possível, a uma reparação da vítima pelo mal, sofrimento e dor, e o responsável percebe o mal que fez sem, por isso, ser oprimido e destruído pelo senso de culpa. Hoje há medidas alternativas à prisão: por exemplo, o serviço social ou os trabalhos de utilidade pública. A reincidência nesses casos é de 19% [na Itália], ante 70% de quem foi detido. A diferença é abissal.

Valor: Fora o da Itália, quais outros sistemas penitenciários conhece?

Colombo: Visitei a prisão de Halden, na Noruega, e a de San José, em La Paz, na Bolívia. Uma diferença abissal. A de La Paz é uma espécie de vilarejo cercado por muros. No interior, os agentes penitenciários não entram porque existe um sistema de regulamentação da vida interna. Alguns detentos são encarregados de manter a ordem e, dentro, tem praticamente de tudo: bares, restaurantes, alfaiate. Há seções baseadas na renda, então alguns têm celas com o ar-condicionado, outros não.

Valor: É uma pequena reprodução da sociedade externa.

Colombo: Sim, mas é injusto que as pessoas, de acordo com a renda, possam viver de um jeito e alguns de outro jeito dentro de uma prisão. Há também um mercado de compra e venda de celas. É uma reprodução das desigualdades externas, com a diferença que a segurança e a ordem são garantidas pelos próprios detentos, numa situação de disparidade muito grave.

Valor: E na Noruega, que situação encontrou?

Colombo: Na Noruega é muito diferente porque a finalidade é reintroduzir as pessoas na sociedade. A prisão de Halden tem 157 mil m2 para 400 detentos. Fica à beira de um bosque, numa área rural, e os quartos estão equipados como se fossem apartamentos para uma comunidade de 20 pessoas, com uma cozinha onde não falta nada, sala de estar, jardim com mesinhas que [os detentos] podem frequentar quando querem. Em outros edifícios, se trabalha: há marcenaria, estúdio musical e rádio.

Valor: Uma penitenciária como a norueguesa não seria considerada uma punição, então?

Colombo: Exato. Na Itália, seria chamada de hotel cinco estrelas.

Valor: No Brasil também.

Colombo: Mas no Brasil há um experimento de recuperação análogo à Justiça restaurativa que se chama Apac [Associações de Proteção e Assistência aos Condenados, entidade jurídica sem fins lucrativos que auxilia a Justiça na execução da pena, recupera o preso, socorre as vítimas e promove a Justiça restaurativa]. É um passo considerável rumo a um sistema de Justiça restaurativa.

Valor: No caso de pessoas que cometeram crimes gravíssimos como estupradores, terroristas e mafiosos, o que fazer com elas? Muitas vezes, os chefões da Máfia continuam mandando de dentro dos presídios?

Colombo: Precisamos usar a tecnologia para evitar que deem comandos do interior da prisão, mas devemos tratá-los como humanos.

Valor: O perdão ao qual se refere no livro é o cristão? O perdão pode ser instituído por lei?

Colombo: Não, o perdão não pode ser instituído por lei. O perdão não é esquecimento, mas uma assunção de responsabilidade. O que aconteceu já foi, mas vamos assumir a responsabilidade recíproca de reinserir na sociedade quem quebrou a relação por meio do crime e de acolher essa pessoa por parte da coletividade. É uma disponibilidade em rever a consequência do crime de maneira diferente da Lei do Talião. É fazer algo de útil. Por que punir? O mal se elimina com o bem, não dobrando o mal. Se o objetivo é garantir a segurança, fazemos com que quem cometeu crime não o cometa de novo.

Valor: Na Itália os crime reduzem todos os anos.

Colombo: Sim, diminuem, embora se diga que ninguém vai preso e que um assassino sai depois de três dias. Não é verdade que ninguém vai preso, mas é verdade que a Justiça penal funciona muito mal. Como é possível que os crimes caiam embora o sistema repressivo funcione mal? Está vendo que não tem relação entre uma coisa e a outra?

Valor: O Brasil registra entre 40 mil e 50 mil homicídios por ano e tem uma população carcerária de mais de 700 mil presos, sendo que cerca de 30% deles aguardam julgamento. Pesquisa Datafolha de 2017 revelou que 60% dos brasileiros concordam com a afirmação “bandido bom é bandido morto”. Ou seja, a opinião pública pede penas mais duras e certeza da pena. Como quebrar esse ciclo?

Colombo: Não é fácil. A resposta ao crime não é racional, mas emotiva. Enxergamos a resposta ao crime como vingança, com a certeza que uma pessoa que cometeu um crime não vai mudar nunca. Deveríamos fazer o que nossas mães falavam quando éramos crianças: antes de reagir, conte até dez. A parte emotiva se acalma e podemos raciocinar.

Valor: Recentemente, após pressão da opinião pública e dos patrocinadores, o Santos suspendeu a compra do atacante Robinho, condenado por estupro em primeira instância na Itália. É justo que alguém que não esgotou todos os recursos sofra uma sanção social desse tipo?

Colombo: Esse é um grande problema. Atualmente, multiplica-se a ideia de resolver tudo por meio do instrumento penal. Existem muitas sanções acessórias, que vão além dessa que vem da reprovação da sociedade civil. A Constituição italiana diz que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado. É uma medida de grandíssima civilidade. Não é porque alguém cometeu um crime que deve ser excluído da vida civil. Se a condenação [de Robinho] for confirmada, ele vai cumprir a pena e, enquanto estiver preso, não poderá jogar bola. Após cumprir pena, poderá voltar a jogar, embora vá estar muito velho para isso.

Valor Econômico 

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