“Se filhos de prefeitos estudassem em escola pública não haveria aulas”

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Foto: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo

Às vésperas do início do ano letivo, professores de escolas públicas de todo o Brasil se preparam para a retomada, ainda que limitada, do ensino presencial. Em São Paulo, docentes da rede estadual deflagram greve em protesto, enquanto na municipal se multiplicam depoimentos de educadores preocupados com a retomada.

A pedagoga Lígia Freire se assustou com o impacto de seu desabafo no Twitter. Professora do Fundamental 1 em uma escola municipal na zona oeste paulistana — ela pede para que o nome não seja divulgado para preservar a equipe da instituição —, Lígia relatou dificuldades para o cumprimento dos protocolos sanitários. “Apesar do medo de represália, decidi falar porque há uma culpabilização dos professores. Não conheço sequer um colega que não queira voltar, mas precisamos de condições”, diz.

Para a educadora, a insegurança quanto ao risco de contágio pelo novo coronavírus é apenas a face visível em torno da polêmica da reabertura das escolas. Faltou ouvir os professores e, sobretudo, conhecer a realidade concreta das escolas públicas. “Se o filho do prefeito estudasse na rede municipal, o debate seria outro”, afirma. A seguir, os principais trechos do depoimento concedido à coluna.

“Quem diria que, em 2021, eu estaria defendendo cautela no retorno ao ensino presencial… Sempre acreditei e continuo acreditando que as dinâmicas de socialização da escola são fundamentais na educação. Há uma culpabilização dos professores. A gente está sendo julgado por todos os lados e não pode tomar decisões. Não foi a gente que decidiu ficar o ano inteiro no ensino remoto. Não foi a gente que decidiu retornar no meio de um repique da pandemia. Somos apresentados como se não quiséssemos trabalhar, quando a realidade é que trabalhamos muito mais no online, acumulando demandas domésticas e nossos papéis de pais e mães. Quero mostrar o lado de quem está no chão da escola.

Sou pedagoga com mestrado. Atuo na rede municipal há cinco anos. Passei por quatro escolas e hoje estou em uma na zona oeste de São Paulo, tida como uma das melhores da rede. Fica num bairro de classe média alta, mas não é abraçada pelos moradores locais. A maioria dos alunos são filhos dos trabalhadores da região: porteiros, empregadas domésticas, funcionários de hospitais públicos. O retorno presencial vai contemplá-los apenas parcialmente, porque muitos deles dependem de atividades no contraturno cuja volta ainda não está totalmente decidida.

As aulas começam no dia 15 de fevereiro, mas a equipe docente está trabalhando desde o início do mês. Estamos buscando condições para implementar os protocolos, que vieram de cima para baixo. Ninguém se sente representado em sua construção. Nossa impressão é que ele está desatualizado: ele ainda é muito voltado para a transmissão do coronavírus por superfícies, quando o aprendizado sobre a doença mostrou que o foco é, na verdade, a transmissão aérea. Também temos dúvidas se as máscaras de pano que nos foram enviadas são adequadas após o surgimento das novas cepas do coronavírus. Outros países têm dado prioridade às máscaras cirúrgicas descartáveis. Os cursos virtuais oferecidos pela secretaria ajudaram, mas nossa equipe entende que há vários pontos que não dá para cumprir na prática.

A ventilação é a questão mais preocupante. Há escolas da rede sem condições ideais de circulação de ar. Na minha instituição, um profissional de saúde foi enviado para fazer uma vistoria. Por serem gradeadas, as janelas não abriam, mas nossa equipe de serviços gerais conseguiu abrir os vidros das salas que davam para o corredor. A sala dos professores é um dos espaços mais críticos. A princípio, nossa opção é não utilizá-la. Nossas reuniões de formação provavelmente serão na quadra, ao ar livre, para diminuir o risco.

A prefeitura fala em investimentos para a retomada. De fato, chegaram materiais às escolas: caixas de álcool em gel, tótens de acionamento com os pés — três para a escola toda, quando entendemos que o ideal seria um para cada sala, afinal temos 600 alunos. De 2019 para cá, a equipe de limpeza diminuiu de 6 para 3 funcionários. A comunicação também não foi a ideal. A direção só soube da criação de uma conta de 4 mil reais para aquisição de EPIs quando precisou justificar os gastos. Alguma coisa se perdeu na transmissão da informação.

O ensino remoto foi complicadíssimo. Não houve adesão da maior parte dos alunos, pois nem todo mundo tem acesso à internet e a um computador. Quando tem, falta disponibilidade da família. Em 2020, fui professora do 2o ano do Fundamental, um período voltado para a alfabetização. A criança não tem autonomia para acessar a plataforma por conta própria, e muitas vezes ninguém em casa podia ajudar. O saldo positivo foi quebrar preconceitos para a educação a distância — há diversos recursos tecnológicos que a gente pensa em incorporar às aulas regulares. No fim, cumprimos toda a carga horária de 2020. A secretaria orientou a não ter reprovação. Cada escola fez discussão quanto a notas. Algumas decidiram por dar conceitos com base no aproveitamento do trabalho online. Eu optei por dar nota máxima para todos, por absoluta falta de condições para avaliar a aprendizagem.

Agora estão propondo o ensino híbrido, com a aula presencial sendo transmitida online em tempo real para quem está em casa. A proposta é nebulosa. Vieram projetores, computadores e tablets para todas as salas. Mas o material ainda não foi instalado — a informação que chegou até nós é que houve um problema na licitação e o prazo é até julho para que esses equipamentos sejam instalados. Além dessa dificuldade tecnológica, há a questão pedagógica: lecionar num ambiente como o Google Meet é muito diferente de dar aula presencial. Muda o tom de voz, mudam as metodologias, a máscara é uma barreira nas teleaulas. Professores do grupo de risco seguem no teletrabalho. Em geral, eles e elas têm mais de 60 anos. É comum que possuam mais dificuldade com as tecnologias.

Quero muito voltar, é o que eu mais quero. O ensino presencial tem me feito muita falta. Não sou do time que argumenta que a gente deve voltar só depois da vacina, apesar de entender quem faz essa defesa. Acho que a gente tem de voltar, mas com condições de controlar a pandemia: protocolos seguros e atualizados; situação de transmissão mais estabilizada, com maior conhecimento das novas cepas; expectativa de melhora com a vacina. Se tiver vontade política pode-se fazer política de rastreio de casos, testagem em massa, isolamento dos doentes, vacina para todos assim que possível. Como esses aspectos não estão presentes, meu filho de 4 anos, matriculado em uma escola da rede municipal, não vai voltar por enquanto.

É um equívoco o debate de ‘abre ou fecha’. Enquanto ficamos nessa discussão, não enfrentamos o real problema: controlar a pandemia e estabelecer condições adequadas para o retorno. Se a gente não tem condições de abrir, se não tem janela na sala, não é por falta de vontade dos professores. Também é um mito achar que a questão da saúde mental das crianças vai ser resolvida de imediato com a reabertura. As crianças vão estar de mascara, respeitando distanciamento… vai ser outra escola. A escola não é uma bolha na sociedade: é um microcosmo, com todos os problemas sociais presentes dentro dela.

Falta conhecer o que é a escola pública. Hoje, quem conhece são alunos, professores e funcionários. Falta conhecimento por parte das autoridades e por parte da classe média letrada. Se o filho do prefeito estudasse na escola pública, talvez nosso debate fosse outro. Talvez tivéssemos melhores condições de abertura. Tem escola particular que está aberta desde outubro do ano passado.

Também faltou diálogo. Não me senti participando da construção do retorno presencial. Não só os professores, mas também as famílias, a comunidade escolar como um todo não está sendo ouvida e não tem poder de decisão. Certamente a gestão democrática poderia ter dado mais segurança para um eventual retorno. As escolas que tiveram sucesso na retomada são as que estabeleceram boa comunicação com famílias, professores e representantes da saúde. A rede pública como um todo não teve isso. A eclosão da covid-19 evidenciou a nossa luta por gestão democrática, que precisa estar presente mesmo depois da pandemia.”

Redação com Uol

 

 

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