290 mil mortos: como o CFM contribuiu para a tragédia no país
NA NOITE EM QUE O BRASIL enterrou, pela primeira vez, mais de 2 mil vítimas de covid-19, médicos que insistem em prescrever remédios sem eficácia comprovada para a doença se preparavam para pregar o chamado tratamento precoce em uma live promovida pelo grupo Médicos pela Vida. Na programação, havia um convidado ilustre: o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Emmanuel Fortes, escalado para falar no primeiro painel do evento.
Fortes acabou cancelando o compromisso e foi substituído pelo colega Fernando Pedrosa, presidente do Conselho Regional de Medicina, o CRM, de Alagoas. O Cremal, de que Fortes é conselheiro titular e ex-presidente, já havia oferecido seu próprio curso sobre o “tratamento precoce” em agosto de 2020.
Programação da live do grupo Médicos pela Vida, acessada a uma hora do início do evento, marcado para as 20h do dia 10 de março.
Programação da live, acessada na manhã de 11 de março, atualizada com a substituição de Emannuel Fortes.
O Código de Ética Médica deixa claro que o exercício da profissão deve estar condicionado a práticas cientificamente reconhecidas. Ele frisa que cabe aos médicos “aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade”. É direito dos profissionais indicar procedimentos que julguem adequados aos pacientes – desde que sejam reconhecidos pela ciência. E lhes é proibido “praticar ou indicar atos médicos desnecessários” e desobedecer às resoluções dos conselhos.
Já o Regimento Interno do Conselho Federal de Medicina, o CFM, afirma que cabe aos conselhos regionais e federal “zelar e trabalhar – por todos os meios ao seu alcance – pelo perfeito desempenho ético da Medicina”. Isso inclui fiscalizar, julgar e disciplinar más práticas dos profissionais da categoria. Instância mais alta da hierarquia, o CFM deve supervisionar os CRMs e funcionar “como Tribunal Superior de Ética”. Deve ainda criar novas resoluções, quando necessário, para garantir o exercício ético da profissão.
Se isso tivesse sido feito quando o tratamento precoce com cloroquina, azitromicina e ivermectina provou-se falso, conforme mostram estudos mais recentes e consolidados, os médicos poderiam ter sido orientados a parar de receitá-lo. Mas não é mais novidade que os conselhos ignoraram essas responsabilidades durante a pandemia. O presidente do CFM, Mauro Ribeiro – acusado pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul de ter faltado a 873 plantões e embolsado o dinheiro desses expedientes na Santa Casa –, veio a público em janeiro deixar claro que médicos não seriam proibidos de receitar medicamentos comprovadamente ineficazes para covid, muito menos punidos por isso.
Mas nem a desculpa do respeito à “autonomia médica” – aparentemente, uma nova expressão para negacionismo na categoria – poderia explicar o silêncio do conselho de Ribeiro diante do anúncio do Médicos pela Vida que estampou jornais de grande circulação no mês seguinte. Rasgando o Código de Ética Médica, que proíbe a divulgação de tratamentos sem comprovação fora do meio científico, o texto promovia medicamentos como a ivermectina contra a covid-19. Sua inutilidade para esse fim já foi declarada pela maior interessada na venda do vermífugo, a Merck, sua criadora e fabricante.
A disposição de membros do alto escalão dos conselhos, como Emmanuel Fortes, para atrelar seu nome ao Médicos pela Vida e emprestar sua voz ao coro anticientífico do chamado tratamento precoce mostra que o CFM não está fechando os olhos para as ações de consequências catastróficas do grupo. É de olhos bem abertos que o conselho decide agir ativamente para incentivar o uso de medicamentos que, ao que tudo indica, têm a mesma eficácia contra a covid-19 que um pacote de incenso.
Não tenha dúvidas: o CFM sabe do alcance de suas ações, que, a essa altura, beiram um atentado à saúde pública. Uma pesquisa encomendada pelo órgão ao Datafolha, divulgada em julho, revela que os médicos são a categoria profissional em que os brasileiros mais confiam. Oito a cada dez pessoas consideram o empenho dos profissionais para atendê-los como bom ou ótimo, e 64% tinham, até então, um alto nível de confiança no trabalho realizado por eles durante a pandemia.
O que podemos concluir a partir disso é simples: se uma pessoa é atendida por um profissional que lhe sugere tomar medicamentos como a cloroquina de forma preventiva, é provável que a confiança depositada no médico a leve a aceitar a falsa prevenção. Além de poderem provocar sérios efeitos colaterais, os remédios podem fazer com ela se sinta segura o suficiente para abrir mão de medidas incômodas, mas realmente eficazes de proteção, como o uso de máscaras e o distanciamento social. O que, em última análise, pode contribuir para sua infecção.
Não à toa chegam diariamente às unidades de tratamento intensivo pacientes que relatam ter feito uso preventivo da cloroquina ou da ivermectina. No Rio Grande do Norte, mais de 90% dos pacientes de covid em UTIs haviam tomado o vermífugo, segundo a infectologista Marise Reis. Nos Estados Unidos, as falsas promessas de prevenção e curas medicamentosas já estão levando familiares de pacientes de covid que foram afetados por efeitos colaterais – alguns, letalmente – a exigir indenizações do governo.
Já houve casos de conselheiros e diretores do CFM que se agarraram a soluções quiméricas, anticientíficas e simplistas para problemas complexos. O exemplo mais claro dessa atitude acriançada vem do ginecologista Raphael Câmara. Conselheiro do órgão e secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, ele luta para que a propagação da abstinência sexual seja a principal política de planejamento familiar no Brasil. Spoiler: isso não vai funcionar.
As (in)ações que tornam a cúpula do CFM uma ameaça à saúde dos brasileiros hoje têm um pano de fundo essencialmente político, como já revelamos no Intercept. O conselho foi tomado de assalto por bolsonaristas que, com receio de melindrar alguém cujo apoio é importante – o presidente –, orientam médicos a não criticar publicamente o chamado tratamento precoce.
Emmanuel Fortes é um dos adoradores de Jair Bolsonaro na diretoria do CFM. O médico tem uma carreira política própria. Concorreu ao cargo de deputado federal pelo PRTB de Alagoas em 2018, eleito suplente, e ao cargo de vice-prefeito de Maceió, capital alagoana, em 2020, pelo PSL, ex-partido do presidente da República. Em 15 de janeiro deste ano, ele postou uma foto de rosto colado com o presidente em seu Instagram, em que se define como um “médico atuante em prol dos cidadãos de bem”.
“Aproveitei para fazer o registro e declarar que continuo confiando em seu governo e estarei consigo em 2022”, escreveu no post, elogiando as políticas de saúde da gestão bolsonarista. “Confio em seu governo, embora não perca a capacidade de criticar aquilo com o que não concorde”.
Bolsonaro, como lhe é costumeiro, não usava máscara. Até a data do post, suas declarações mais famosas sobre a pandemia incluíam: “e daí, quer que eu faça o quê?”;“país de maricas”; e “procura outro para pagar a sua vacina”. De lá para cá, elas se somaram à frase “vai tomar vacina na casa da sua mãe” e à afirmação de Eduardo Bolsonaro de que a população deveria enfiar máscaras “no rabo”. Fortes não criticou publicamente nenhuma delas.
Em fevereiro, o vice-presidente do CFM se reuniu com outros membros do órgão, como o presidente Mauro Ribeiro, e com o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, para conversarem sobre a vacinação. Tudo que teve a dizer sobre o encontro foi que o ministro os ouviu “atentamente”. Pazuello já reduziu cinco vezes a previsão de vacinas disponíveis no Brasil para março.
É irônico, portanto, que Ribeiro acuse quem faz pressão pelo impedimento dos protocolos que nem previnem, nem tratam, de tentar politizar o “tratamento precoce”. Quem politiza a questão é ele mesmo. Sem apoio de Ribeiro e seus colegas do CFM a medidas que a ciência não indica mais, elas não estariam ainda sendo discutidas a essa altura. Em outras circunstâncias, é possível que todos os médicos que insistem em prescrevê-las fossem seriamente punidos pelo próprio CFM.
A rasgação de seda do governo é institucionalizada. Em 24 de março de 2020, o CFM publicou o documento “Covid-19: nota sobre atuação do Ministério da Saúde”, em que elogia a gestão do governo Bolsonaro durante a pandemia. O Ministério da Saúde, para Ribeiro, estava atuando “de forma precisa e responsável”, tratando profissionais de saúde com respeito e travando uma “incansável” luta contra as fake news, tarefa “louvável”, já que “a propagação de notícias falsas e alarmistas pode criar danos enormes à saúde e ao bem-estar da população”.
Se houve uma luta incansável por parte deste governo durante a pandemia, foi pela criação e disseminação de fake news. E, quando o CFM soltou sua nota, isso já estava bem claro. Nos dias anteriores à publicação, Bolsonaro já havia caracterizado a covid-19 como “gripezinha” e o medo da pandemia como “histeria” e “fantasia”. Nenhum de seus escândalos negacionistas foi suficiente, contudo, para que o Conselho Federal de Medicina achasse necessário falar novamente sobre a atuação do Ministério da Saúde ou desmentir as fake news que brotam da boca presidencial.
Não. O silêncio enfurecedor dos conselhos continua sendo quebrado apenas quando eles próprios decidem fazer parte da narrativa anticientífica. Outra prova disso é o posicionamento dos órgãos em relação a medidas de restrição e, em última instância, aos lockdowns, reconhecidamente eficazes, como apontam diversos estudos.
Tem muita gente boa que é contra o lockdown. Por quê?Porque ta sem saída. E quem é o responsável pela quebra de empresas durante a pandemia? O Governo Federal e seu gerente da crise: as Forças Armadas. pic.twitter.com/ERWCsMjnFA
— Leandro Demori (@demori) March 11, 2021
Em 1º de março, o Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal divulgou uma nota pública contra o lockdown. Sem apontar qualquer respaldo científico, o CRM-DF afirma que ele “já se provou ineficaz” e que “ações preventivas eficazes estão relacionadas à campanha de educação sobre as medidas individuais de higiene, uso de máscara, distanciamento social, vacinação populacional e ostensiva fiscalização por parte do governo, nunca por decretação de lockdown”.
Três dias depois, o CFM criticou medidas de restrição de forma sutil. Depois de incentivar medidas semelhantes às citadas pelo CRM-DF, mencionou a adoção de medidas restritivas, afirmando que elas podem “momentaneamente” reduzir a pressão sobre o sistema de saúde, mas que podem também “gerar consequências graves e de efeito duradouro”. O que o CFM está dizendo à população é: os benefícios da restrição são passageiros; já os malefícios, por outro lado, são perigosos e prolongados. Mais uma vez, nenhuma fonte científica é referenciada.
Durante a maior crise sanitária do século, certos membros da cúpula do Conselho Federal de Medicina decidiram seguir os passos do presidente que tanto admiram e entrar para a história como parte fundamental da equação inacabada que, até a publicação deste texto, nos levou a quase 290 mil corpos enterrados. Tornou-se um risco ao país a atitude do comando do conselho. O discurso de Ribeiro deixa isso claro ao incentivar sem rubores tratamentos comprovadamente ineficazes, que podem ameaçar a saúde dos pacientes, ao mesmo tempo que desestimula reais medidas de prevenção, como o lockdown. Na guerra contra o coronavírus, ao que tudo indica, integrantes da diretoria do CFM já escolheram seu lado. E não é o dos brasileiros.