Especialista em UTIs vê cenário sombrio no país
Foto: Gabriel Kuchta / Getty Images
As perspectivas para as próximas semanas diante da alta ocupação das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e da falta de leitos em boa parte dos estados brasileiras são sombrias. A percepção é do médico Ederlon Rezende, membro do Conselho Consultivo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) e coordenador do projeto UTIs brasileiras, que monitora dados relacionados a internações nessas unidades em decorrência da Covid-19.
Em um ano de pandemia, o levantamento mostra que dois a cada três pacientes intubados devido à doença nas UTIs do país morreram. Em geral, a mortalidade entre os que precisam de cuidados intensivos nos hospitais brasileiros é o equivalente a um terço desses infectados.
Segundo Rezende, esse índice elevado está associado à gravidade da doença, e não à intubação em si, procedimento seguro usado como única forma de manter determinado paciente vivo. Ele argumenta que entre os que não necessitam de ventilação mecânica a mortalidade é inferior a 10%.
Em entrevista a ÉPOCA, o médico ressaltou que existe um temor de sobrecarga da rede de saúde, impulsionado pela nova variante, em que as UTIs são o ponto mais vulnerável. Rezende pontua ainda que o perfil dos internados também tem abarcado mais jovens, mas que uma vacinação célere dos mais idosos já ajudaria a desafogar o sistema.
“A falta de leitos de UTI é um problema seríssimo, porque você deixa de oferecer recurso para a parcela da população que tem a forma mais grave da doença, e a falta desse recurso tem como consequência, líquida e certa, a morte”, afirmou.
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
O que explica essa alta mortalidade entre os que são intubados?
A doença Covid-19 tem uma letalidade baixa. A grande maioria dos pacientes, cerca de 85%, é assintomática ou tem poucos sintomas, o que fez algumas pessoas acharem que se tratava de uma gripezinha. Mas é importante não esquecer que 15% evoluem com formas mais graves da doença, precisam ser hospitalizados e parte deles precisa de uma UTI. Aqueles que desenvolvem a forma mais grave, quando há perda da função respiratória, não conseguem inspirar oxigênio e expirar gás carbônico, precisam ser intubados e necessitam de ventilação mecânica, porque é a única forma de mantê-los vivos. Caso contrário, 100% das pessoas nessa condição, que não recebem esse cuidado, morrem. Infelizmente, no momento em que o sistema colapsa, algumas pessoas morrem por não ter acesso a uma UTI. Esse dado de que só um a cada três pacientes sob ventilação mecânica sobrevive é por conta da gravidade da doença, não é consequência do tratamento. A ventilação mecânica e a intubação são procedimentos muito seguros, realizados há décadas. Muita gente é submetida a esse procedimento em grandes cirurgias, por um acidente, um trauma, e se recuperam rapida e totalmente. Portanto, não é a ventilação responsável por essa alta mortalidade, mas sim a gravidade da doença.
Mas não é um índice preocupante?
É preciso que as pessoas acordem e tenham consciência de que essa doença, num percentual pequeno de pacientes, é muito grave e tira a vida. Daí a importância de evitar que a doença ocorra. No geral, a mortalidade dos que chegam a UTIs é de 35%, portanto, um terço dos pacientes sucumbem, mas entre os que não recebem ventilação mecânica ela é muito baixa, gira em torno de 10%. Quanto mais grave a doença, quanto mais suporte o paciente necessita, maior o risco de mortalidade.
Existem outros fatores que desencadeiam essa mortalidade elevada?
No começo, falou-se muito em grupo de risco, que são os pacientes que têm maior risco de evoluir com a forma mais grave da doença, acima de 60 anos ou que apresentam comorbidades. Dentro desses pacientes estão aqueles que têm maior risco de mortalidade. A gente sabe que a idade é um fator importante. Isso talve explique por que eles têm mais comorbidades. Existe um outro fator que é o vírus. Quando entra na célula, ele usa uma chavinha, que a gente chama de receptor da enzima de conversão de angiotensina 2 (ECA2). Ela tem uma apresentação mais exuberante nos pacientes mais idosos e nos homens. E eles acabam sendo um subgrupo que tem mais risco de evoluir com a forma mais grave. Não significa dizer que pacientes jovens sem comorbidades não podem também ter uma forma grave que precise de ventilação mecânica e possa até morrer. Talvez tenha havido um mal entendimento no começo de achar que a doença grave era exclusiva dos idosos, e hoje estamos vendo nas UTIs um perfil novo de pacientes, com pessoas mais jovens sem comorbidades. Talvez porque essas pessoas estejam se expondo mais, achando que estão seguras, livres de ter a forma grave da doença.
O levantamento mostra que 45% dos internados têm menos de 65 anos. É um dado que alerta para a ocorrência de casos graves mesmo entre jovens?
A quantidade de pacientes internados em UTI com menos de 65 anos é quase 50%. É importante ressaltar que das mais de 250 mil mortes no país, 75% delas foram nas pessoas com mais de 60 anos, mas isso não torna as pessoas mais jovens invulneráveis. Elas também estão sob risco.
As aglomerações de jovens em meio às festas de fim de ano e ao verão foi preponderante para esse quadro?
Não tenha dúvida. Nesse momento, vivemos uma incerteza acerca das novas variantes, que certamente são mais contagiosas, e a gente suspeita que possam provocar doença mais grave. Ainda é cedo para afirmar isso. Mas associado ao fato de que os jovens estão mais expostos, tem contribuído para observar um número cada vez maior desses pacientes dentro das UTIs. Não sei se as pessoas cansaram, baixaram a guarda, se as informações contraditórias das autoridades contribuem para isso, mas é muito frustrante para nós, depois de um ano de pandemia, continuar tendo que insistir que as pessoas precisam se proteger, que vai muito além de si próprio. Você está contribuindo para interromper esse ciclo do vírus que tem sido tão pernicioso.
A vacinação célere é o que pode conter isso?
A gente tem uma expectativa positiva com as vacinas. Se a gente conseguir vacinar essa parcela dos 60 anos ou mais, que respondem por 75% dos óbitos e representam cerca de 15% da população, talvez consigamos de alguma forma desafogar nosso sistema de saúde. E quem sabe, com isso, a gente possa salvar mais vidas.
A alta taxa de ocupação e a escassez de leitos atual pode agravar essa situação, pressionando as unidades?
Uma coisa é uma UTI funcionando normalmente, dentro da sua capacidade, usando de maneira adequada sua estrutura, bem organizada, com a equipe afinada. Outra é uma situação de colapso, em que você está sobrecarregado, com a UTI lotada, fila de pacientes esperando. Não tenha dúvidas de que isso compromete a qualidade do cuidado e consequentemente a qualidade do resultado.
Com a nova variante, há um temor de que esses números também possam aumentar ainda mais?
Esse é um grande temor. Estamos observando um avanço da doença em várias cidades, capitais e no interior, num ritmo que não vimos até aqui. As perspectivas para as próximas semanas são sombrias. Estamos muito preocupados com a sobrecarga do sistema. Nessa sobrecarga, certamente o ponto mais vulnerável são as UTIs. E a falta de leitos de UTI é um problema seríssimo, porque você deixa de oferecer recurso para a parcela da população que tem a forma mais grave da doença, e a falta desse recurso tem como consequência, líquida e certa, a morte.
O tempo médio de 13,1 dias na internação para Covid-19 é considerado um dos mais elevados?
A Covid é uma doença grave. O tempo de permanência na UTI desses pacientes na média é mais do que o dobro de um paciente habitual de UTI. O tempo de ventilação mecânica dele também é quase o triplo de um paciente habitual de UTI. É um tempo prolongado. E algumas UTIs já têm identificado um aumento nesse tempo de permanência que talvez seja justificado por conta de uma forma mais grave da doença.
Em relação ao perfil dos internados, por que há uma prevalência de homens?
A expressão dos receptores ECA2, que fazem com que a doença seja mais agressiva, é maior em homens e nos mais idosos. Outro fator importante que faz com que os homens sejam mais acometidos é que eles têm mais comorbidades que as mulheres, que são mais atenciosas nos cuidados à saúde no que chamamos de atenção básica. Os homens são mais negligentes com isso. Essa mortalidade maior dos homens e mais idosos é uma tendência mundial.
Hoje morre-se mais ou menos em UTIs do que o início da pandemia? Por quê?
Certamente, hoje morre-se menos. Teve um trabalho publicado meses atrás com 250 mil casos, com dados oficiais de mortalidade nos primeiros seis meses da pandemia, que davam conta de que a mortalidade entre os pacientes sob ventilação mecânica era de cerca de 80%. Ou seja, naquele momento, a cada cinco apenas um sobrevivia. Não tenho dúvida de que houve uma melhora no cuidado. Mas nesse momento estamos preocupados se não estamos vivenciando uma nova situação, até pelas novas variantes, com doentes mais graves, e a gente não sabe qual implicação e impacto que isso poderá ter. Ainda está muito cedo para esse tipo de avaliação.
Como o senhor analisa a diferença dos indíces entre hospitais públicos e privados?
Vários fatores influenciam. É muito mais comum que o hospital público esteja sobrecarregado e colapsado que o hospital privado. O segundo ponto é que as pessoas que têm acesso a medida suplementar habitualmente têm uma condição de saúde melhor, tiveram mais acesso à atenção primária. Elas têm menos comorbidades, são menos doentes do que a turma que utiliza o SUS. O terceiro é que o acesso à UTI privada é mais fácil do que o acesso à UTI pública. Se você perceber, isso seleciona que os pacientes mais graves cheguem às UTIs públicas. É possível ver essa diferença claramente pelo percentual de pacientes sob ventilação mecânica, que é muito maior no público do que no privado.
O presidente Jair Bolsonaro minimizou esses dias a falta de leitos e disse que é um problema antigo da saúde. Como reage a essa declaração?
Tive a oportunidade de ver esse tweet que circulou com uma notícia de 2015 sobre a falta de leitos de UTI. Aproveitaria para dizer que fico triste em saber o quanto nosso presidente está desinformado. Sempre tivemos esse problema de escassez de leito de UTI no SUS, mas durante a pandemia houve um aumento de mais de 40% no número de leitos de UTI no Brasil. Estamos falando de uma falta de leitos num cenário em que aumentamos os leitos em 40%, provocado por uma única doença. Chega a ser imbecil ignorar esse fato e ficar dizendo que esse problema de falta de leitos é um problema crônico. É não olhar para a janela e ver o quanto está todo mundo angustiado. Para quem atua nas UTIs, a pressão de estresse físico e emocional é muito grande, mas nada é mais estressante do que não ter vaga na UTI para colocar alguém que precisa. Talvez o presidente não tenha nem ideia do que é isso, porque quando ele teve Covid teve uma estrutura de atenção e cuidado ao redor dele, muito diferente dos brasileiros que estão precisando de um leito, e não estão disponíveis. Minimizar isso enquanto problema é uma irresponsabilidade grotesca para um chefe de Estado.
Que medidas o senhor aconselharia e que devem ser tomadas para reduzir esses números?
É simples de responder, mas difícil de executar. Duas coisas para conter a curva de crescimento. A primeira é vacinação do maior número de brasileiros possível. Infelizmente nosso programa está muito atrasado. A outra é, enquanto não conseguirmos vacinar, afastamento social. Por mais duro que possa ser e impacte nossa economia. Aí entra a responsabilidade do governo. As pessoas desfavorecidas que todos os dias precisam sair de casa para ter o que comer precisam ser ajudadas por nós, pela sociedade. Quando você faz algo que protege o outro, você está se protegendo. É assim que se combate uma pandemia.
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