Militares querem reabilitar imagem de Pazuello
Foto: Pedro Ladeira / Folhapress
É da colunista Eliane Cantanhêde a revelação de uma manobra militar no Planalto que pretende pôr no Ministério das Relações Exteriores o almirante Flávio Augusto Viana Rocha e jogar ao mar o chanceler Ernesto Araújo. A manobra seria completada pela vacância da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), dirigida por Rocha, que seria entregue ao general Eduardo Pazuello, restituindo um lugar ao sol na Esplanada ao homem que levou cloroquina em vez de oxigênio a Manaus. Como disse uma vez um general à coluna: em Brasília não falta quem tenha ideias ruins para resolver tais imbróglios.
A situação de Pazuello deve ser definida nesta semana. Até porque mandaram avisar ao Comando do Exército que o destino do especialista em logística será decidido antes da Páscoa. O general saiu da Pasta dizendo que políticos rondavam a Saúde “porque todos queriam o pixulé no final do ano”. Era um discurso para os colegas, para o público interno. Queria fazer crer que os militares honestos foram prejudicados por civis corruptos. Se é possível acreditar no que disse o senador Major Olímpio em julho de 2020 – muito antes do fim do ano – foi a equipe de Pazuello que liberou R$ 3 bilhões de verbas do Ministério contra a covid-19 para prefeituras e entidades indicadas por meio de deputados e senadores.
Ou seja: no meio da pandemia, em vez de o dinheiro ser mandado para onde era mais necessário, ele foi para onde os parlamentares quiseram, sem nenhuma garantia de que isso obedeceria a critérios epidemiológicos, morais ou éticos. Pazuello teria repetido um velho truque de se fazer de vítima ao sair do ministério? Seria possível convencer seus amigos de Agulhas Negras, desde que revelasse quem são os políticos que lhe foram pedir um “pixulé”. Podia também entregá-los ao Ministério Público. E aproveitar e fornecer aos eleitores a lista dos 200 deputados e 50 senadores que, segundo o Major Olímpio, receberam de R$ 10 milhões a R$ 30 milhões a fim de o governo fidelizar sua base.
Quem aceitou participar da operação em julho de 2020 precisou preencher uma planilha na qual havia 11 campos em branco. No primeiro devia pôr o nome do parlamentar e, no segundo, o do partido. Depois, a Unidade da Federação, o órgão que receberia o dinheiro e a ação contemplada. Em seguida vinham os campos para o título, o favorecido, o CNPJ, o GND (Grupo de Natureza de Despesa), o valor e os dados do Siconv, o portal do Sistema de Convênios que processa informações sobre transferências de recursos federais para órgãos públicos e privados sem fins lucrativos. Olímpio entregou uma cópia do documento à coluna. Morto em 18 de março, vítima de complicações da covid-19, Olímpio entregou uma cópia do documento à coluna à época. Talvez o Ministério Público indague se o dinheiro foi bem utilizado, segundo o que manda a Lei de Improbidade Administrativa.
Por enquanto, toda a operação de resgate do general Pazuello é chamada de mera especulação por quem tem acesso a Jair Bolsonaro no Planalto. Mesmo no fim de semana havia quem garantisse que nada disso havia sido tratado pelo presidente. Até que a temperatura voltou a esquentar no domingo. E não porque Deus quis, mas porque o civil nessa equação resolveu repetir a estratégia de Pazuello. Araújo sugeriu em suas redes sociais que os senadores que pediram sua cabeça no Congresso seriam movidos por interesses comerciais da China, em razão da adoção da tecnologia 5G.
E isso após o presidente do senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), buscar um tratado de paz do governo com os demais Poderes para o combate à pandemia. A reação do chanceler seria a repetição do mito da facada nas costas, a Dolchstoßlegende, tão cara à extrema-direita e ao militarismo alemães, após o Tratado de Versailles? De imediato, a milícia bolsonarista das redes sociais passou a dar crédito ao diplomata – uma vítima de políticos contrários aos interesses nacionais –, para a revolta dos senadores.
Araújo também incomoda os militares próximos a Bolsonaro. Foi assim quando deu apoio irrestrito às intenções de Donald Trump de usar o território brasileiro em ações contra a Venezuela. Aliás, ele é uma antiga aposta dos generais. Um deles garantia em 2019 que o diplomata que Eduardo Bolsonaro tirou do bolso do colete para o projeto de guerra ideológica do governo seria um dos primeiros ministros do governo a cair. Outros generais também apostaram, nesses dois anos, na queda do diplomata. Erraram feio.
No governo militar-bolsonarista – a expressão é do professor da Unesp, Héctor Luis Saint-Pierre –, Araújo consolidou a posição de pária na Esplanada. E mesmo que caia agora, nada garante que o substituto seja o almirante Rocha, que terá de prevalecer ante diplomatas, como o embaixador brasileiro na França, Luiz Fernando Serra, cujo nome passou pela mesa do apartamento de Eduardo Bolsonaro durante as reuniões que definiram o Ministério de seu pai, em 2018. Serra disputava então o cargo com Araújo.
O diplomata ameaça perder o cargo pela mesma razão que derrubou Pazuello: os 300 mil mortos na pandemia. Em sua luta contra o “marxismo cultural”, o chanceler talvez sonhasse em receber um dia o mesmo epíteto que Bernard-Henri Lévy reservou a Raymond Aron: “encarregado de negócios marxistas”. Mas Aron foi capaz de deixar de lado seu “encontro final” com Marx para produzir o monumental Penser la Guerre, Clausewitz. O francês explicou: “Teria sido mais difícil, porém, mais instrutivo aplicar a mesma técnica à Marx e mais interessante compreender por que Marx se presta a tantas interpretações”.
O pensador francês não se deixava levar pela história. Foi assim em 1940, quando foi continuar o combate em Londres, após a queda da França. Aron também não fez da paz a continuação da guerra por outros meios, como os guerreiros ideológicos do bolsonarismo. Repudiava os que pensavam ser indistintos os conflitos na sociedade das situações bélicas, pois sabia que a guerra se define pela especificidade de seus meios. Esse “professor de higiene mental”, como o definiu Claude Lévi-Strauss, em O Espectador Engajado, publicado dois anos antes de sua morte: “Tenho a tendência de pensar que a ignorância e a estupidez são fatores consideráveis na História. E, frequentemente, digo: o último livro que gostaria de escrever seria sobre o papel da estupidez na História”.
Dirigindo o Itamaraty, Araújo entregou a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) a olavistas que fizeram dela um centro de difusão de tolices bizarras. Será lembrado como o chanceler de raciocínio tortuoso, uma espécie de “encarregado de negócios globalistas”. Mas ele nunca esteve só. Pazuello e outros trilharam o mesmo caminho pavimentado pelo presidente Jair Bolsonaro. Ou como disse um coronel engenheiro à coluna: o que importa para o bolsonarismo e seus adeptos – militares e civis – “não é acreditar no que seja verdade, mas tornar verdade o que se acredita”. Essa ambição liquefez no passado a fronteira entre a civilização e a barbárie. A Terra, como sabemos, é esférica; jamais será o cubo em que o bolsonarismo insiste em transformá-la.
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