Mortes por falta de UTIs se espalham pelo país
Foto: MARCELO SEABRA/AG PARÁ
Pessoas com covid-19 morrendo na fila à espera por um leito de UTI, falta de remédios e uma explosão de novos casos sem ter onde tratá-los. É assim que médicos descreveram o cenário de “colapso” no Hospital Regional Público da Transamazônica (HRPT), em Altamira, no interior do Pará.
O hospital é referência na região e atende mais de 500 mil pessoas que vivem em nove cidades. Hoje, porém, a unidade está saturada, não tem condições de atender mais ninguém e já transfere pacientes para outros Estados em viagens que duram horas.
Um relatório divulgado com base nas informações divulgadas pelas prefeituras e secretarias de Saúde da região do Xingu apontava que 14 pessoas estavam na fila por uma vaga na UTI às 22h de quarta-feira (24/3). Cinco pessoas morreram e outras 200 foram contaminadas com covid-19 nas últimas 24 horas.
Na terça-feira (23/3), a Prefeitura de Altamira decretou calamidade pública pelos próximos três meses. A intenção da prefeitura é agilizar a compra de insumos e equipamentos para os hospitais da região, sem a necessidade de uma licitação. Mas para que ele seja legalmente válido ainda precisa ser aprovado pela Assembleia Legislativa do Pará (Alepa).
Apesar do relato dos médicos e do desespero da prefeitura, a Secretaria Estadual de Saúde do Pará diz que está tudo sob controle.
Um médico que trabalha no hospital disse à BBC News Brasil, sob a condição de anonimato, que, além da falta de vagas, os doentes apresentam quadros cada vez mais graves.
“Os casos aumentaram muito desde o início do ano. A doença está mais grave também. Antes, demorava uma semana para surgir um quadro de pneumonia. Agora, o paciente dá entrada e isso acontece depois de quatro dias. Uma evolução rápida e mais grave, com maior tempo de internação”, explicou ele.
Ele contou que o hospital Santo Agostinho, também em Altamira, está lotado. Os médicos ouvidos pela BBC News Brasil contam que diversas pessoas morreram em Altamira sem ter a chance de receber um tratamento intensivo ou serem intubadas numa UTI.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Saúde do Pará confirmou que há uma fila por UTI, sem especificar números. Apenas se limitou a dizer que esses pacientes são transferidos para outras regiões, como “baixo Amazonas e Tapajós”, a 555 km e 486 km, respectivamente.
Questionada sobre quantas pessoas morreram aguardando uma vaga na UTI nas últimas semanas, a pasta não respondeu e se resumiu a dizer que “tem conseguido garantir atendimento aos pacientes”.
O hospital, por meio de sua assessoria de imprensa, disse ainda que não considera a atual situação como um colapso, relatando ter atendido 643 pessoas com suspeita ou casos confirmados de covid desde o início da pandemia. No período, a unidade disse ainda ter mantido “sua referência para 20 especialidades médicas”.
Na quarta-feira, uma reunião do comitê de crise criado pela prefeitura de Altamira, com membros do Ministério Público, representantes de bares e restaurantes, igrejas, médicos, sociedade civil e movimentos sociais, chegou a um acordo para decretar um lockdown na cidade. As restrições mais duras para evitar a proliferação do vírus ficarão em vigor do dia 27 de março até o dia 4 de abril.
No dia 11 deste mês, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), visitou o Hospital da Transamazônica. Na ocasião, lembram os médicos, ele inaugurou leitos para pacientes leves e moderados de covid. Além disso, prometeu a abertura de mais dez leitos de UTI. A Secretaria da Saúde disse que essas unidades serão entregues até o fim desta semana.
Mas os médicos dizem que esses leitos nem sequer atenderão a demanda atual de pessoas que estão na fila por uma unidade de terapia intensiva.
“Essas UTIs vão ser ocupadas imediatamente por essas pessoas que estão nessa fila de espera. Não vai ser nem o mínimo necessário. Fora que o colapso já estava evidente e esses leitos vão chegar tarde para muita gente”, disse um médico que pediu para não ser identificado.
Os profissionais de saúde que atuam na unidade ouvidos pela reportagem disseram que só há dois caminhos para aliviar o cenário caótico da saúde no Pará. Um deles é a criação de mais leitos de UTI.
Eles dizem que uma sugestão seria acelerar o processo que o Hospital Geral está fazendo de transformar leitos comuns em leitos clínicos para pacientes com covid. Em última instância, esses leitos poderiam ser transformados em UTIs. Mas para isso também é necessária a compra de equipamentos.
O segundo apelo dos médicos é para que o governo aumente as restrições para a circulação de pessoas ao menos até a chegada de novos equipamentos para as UTIs que garantam que mais nenhum paciente fique na fila.
“Eu não acho que investir em hospitais de campanha seja uma boa saída. Já foi gasto muito dinheiro com essas estruturas temporárias que depois são desmontadas e não fica nada para a população. Se tiver que investir, que seja em melhorias ou ampliação do que já tem porque depois isso fica para o povo”, opinou um médico à BBC.
Profissionais que trabalham no hospital da Transamazônica também relataram ter esgotado os estoques nas últimas semanas de ao menos dois medicamentos usados no tratamento de pacientes com covid: a enoxaparina (anticoagulante) e a dexametasona (corticoide). Isso, segundo eles, prejudica o tratamento porque mudar os corticoides diminui o efeito da medicação.
“Quando ocorre essa falta de medicamentos, a gente acaba mudando o tratamento e isso leva a um desfecho ruim para o paciente. É muito comum surgir uma pneumonia secundária em casos de covid e são necessários antibióticos para tratá-la. Quando você precisa mudá-lo, ele não faz o mesmo efeito”, disse um dos médicos.
Questionado, o hospital disse que não há falta desses medicamentos, mas não respondeu se eles acabaram recentemente, como afirmam os médicos. A administração estadual disse que desde o início da pandemia, um “trabalho de logística envolve a aquisição antecipada em quase dois meses para evitar o desabastecimento da unidade”.
Do lado de fora do hospital, famílias dos pacientes ficam angustiadas à espera de notícias e se dizem indignadas com o tratamento dado a seus parentes. Uma delas disse à BBC por telefone que o marido estava numa situação grave e mesmo assim não foi intubado. Essa é uma reclamação em comum de quem passa parte do dia à espera de informações sobre quem está no hospital.
A BBC News Brasil conversou com uma pessoa ligada à cúpula do hospital, mas que também pediu para não ser identificada. Ela disse que os médicos fazem todos os esforços possíveis para que o paciente não seja intubado, pois isso prejudica o organismo de quem está internado.
“Temos uma máscara (de respiração mecânica) para evitar entubar o paciente porque a gente sabe que isso dificulta muito a vida dele. Às vezes, a família entende isso de uma forma diferente, até porque a covid impede que eles vejam quem está internado e acompanhe o tratamento mais de perto. Mesmo assim todos os dias ao menos um médico desce e conversa pessoalmente com cada familiar para explicar o caso de cada um”, afirmou.