Países que tiveram ditaduras revogaram “leis de segurança nacional”
Foto: UESLEI MARCELINO / REUTERS
Em cenário distinto ao do Brasil, onde o governo de Jair Bolsonaro e as forças de segurança vêm usando a Lei de Segurança Nacional contra críticos do presidente, outros países da América do Sul não dispõem de um dispositivo legal tão abrangente. Especialistas de Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Equador ouvidos pelo GLOBO destacam que, em todos os casos, a liberdade de expressão é um direito defendido pelas mais altas autoridades nacionais.
Na Argentina, que aprovou a atual Constituição em 1994, nove anos após a redemocratização, todas as leis da ditadura (1976-1983) foram revogadas. O conceito de segurança nacional que predominou nas décadas de 60, 70 e 80 — não somente na Argentina, mas em vários países do continente, no contexto da Guerra Fria —, foi abandonado após a retomada da democracia, lembra Manuel Tufro, diretor da Área de Justiça e Segurança do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels). Ou seja: foi abandonada a ideia de que governos enfrentam perigosos inimigos internos e precisam, em consequência, contar com um arcabouço legal para combatê-los.
— Em 1988, foi aprovada a Lei de Defesa Nacional, que prevê normas em caso de agressões militares externas. Em 1991, a Lei de Segurança Interior. Foram separadas de forma muito clara a segurança externa da defesa nacional, que deixou de estar em mãos dos militares — explica Trufo.
Nenhuma das duas legislações inclui questões relacionadas a eventuais atentados à moral de autoridades, ou delitos como calúnia e injúria. A Argentina tem, ainda, uma lei sobre estado de sítio, que determina que, em caso de comoção interior, o governo deve contar com autorização do Congresso para suspender direitos e garantias individuais.
No governo do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), o Cels e outras ONGs denunciaram o suposto abuso governamental na perseguição de críticos do presidente, utilizando o delito de intimidação pública, previsto no Código Penal. Foi o caminho escolhido para denunciar os responsáveis por críticas e até ameaças nas redes sociais.
— Nenhum dos processos prosperou. Foram claras tentativas do Executivo de intimidar opositores — disse o especialista do Cels.
No Paraguai, hoje governado por Mario Abdo Benítez, tampouco existe uma lei similar à brasileira. A Constituição de 1992 impede que o país tenha uma legislação que restrinja a liberdade de expressão, comenta o advogado Jorge Rolón, professor de Direito à Informação da Universidade Católica de Assunção:
— Imediatamente após a queda da ditadura de Stroessner (1954-1989), todas as leis aprovadas durante o regime militar sobre segurança interna foram revogadas. Nossa Constituição tem normas que, em alguns casos, são superior às da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
No vizinho Uruguai, a situação é similar. O país nunca teve dispositivo parecido à lei brasileira de Segurança Nacional, nem mesmo durante a ditadura (1973-1985). A analista política uruguaia Mariana Pomies lembra que seu país é um reconhecido defensor da liberdade de expressão e nele “é muito malvista qualquer pessoa, ou autoridade, que busque limitar esse direito”.
— O Uruguai é muito cuidadoso, e todos os presidentes sempre foram muito cuidadosos em relação ao respeito à liberdade de expressão — afirma a analista.
Por lá, como no Chile e no Equador, quando alguma autoridade decide tentar punir organizações ou críticos individuais, recorre ao Código Penal.
— Tivemos uma Lei de Segurança Nacional, mas foi revogada há muitos anos. O presidente (chileno) Sebastián Piñera já foi acusado de tudo, mas é raríssimo por aqui ver alguma reação como o que observamos no Brasil — diz Iván Witker, professor da Universidade do Chile.
Em um episódio recente, o deputado comunista Hugo Gutiérrez foi denunciado pelo governo por ter divulgado um desenho no qual crianças aparecem disparando contra o presidente. Depois de uma intensa polêmica, Gutiérrez se apresentou voluntariamente aos tribunais e pediu para ser investigado.
No Equador, país que teve sua última ditadura entre 1976 e 1979, o analista Diego Pérez Enríquez comenta que governos recentes, sobretudo o do ex-presidente Rafael Correa (2007-2017), utilizaram leis sobre meios de comunicação para intimidar críticos.
— Nosso Código Penal prevê sanções em casos de ofensas, mas não tem sido utilizado — aponta o analista.
O caso brasileiro é, claramente, uma exceção à regra no continente. Países que também tiveram ditaduras e, posteriormente, reformaram suas constituições (o Chile será o último a fazê-lo), deixaram no passado leis que limitam direitos considerados fundamentais.